quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Um fundo

 A fuga, é cada vez mais, uma constante. Perdidos, desnorteados, amedrontados, ao ponto de termos medo até da nossa própria sombra. A desconfiança reina, e a verdade é um foco direcionado para dentro, um fundo onde ninguém chega - O reinado da nova ordem desorientada. 
Dêem-me um pouco do vosso tempo, mas não para falar da inoperância dos sentidos, e de tudo…. o que nos faz infeliz ou até mesmo feliz, e eu vos darei um pouco de mim.

É tudo o que o ser humano precisa, e ainda não viu, que só um pouco de cada um, faz a diferença no ser maior e mais verdadeiro com ele próprio. 

Dolores Marques - Ônix in Eventos 2013

Sentidos esquizofrénicos

As manhãs são sempre uma correria desenfreada. Ninguém fala, mas todos conspiram contra a sua sorte. Uns vão bem, outros vão mal e outros, assim-assim, e ainda os outros, como Deus manda. Mas, hoje os mandos e desmandos chegam-nos de um sentido obrigatório. Corta-se o sentido normal das coisas verdadeiras, e criam-se novos sentidos inversos à verdade dos nossos olhos;  uns abertos, outros fechados para o novo sentido. E assim vamos seguindo;  uns olham para a direita, outros olham para a esquerda, e os outros até parece que acordaram com umas talas nos olhos. Só veem o que lhes convém, não vá o diabo tecê-las e depois caírem num buraco sem fundo qualquer, como este de hoje que nos impede de andar para a frente.

E o polícia de trânsito, coitado, simplesmente acordado, para o que lhe ordenaram, num sentido original e esquizofrénico, vai acenando com uma das mãos o nosso novo sentido. Meu Deus, o que um simples buraco a precisar que lhe tapem a boca, provoca no movimento matinal duma cidade, que dorme de dia e acorda de noite, para os mais estranhos sentidos obrigatórios. 
Simplesmente o caos a acordar, ou a adormecer a cidade.

Nota; Tenho dias,  que me falta a paciência para tanta anormalidade. Somos um beco em ruinas, somos simplesmente o acaso de uma ordem inversa à normalidade


Dolores Marques: Dakini in Eventos 2013

Tic-tac

Tenho dias que só me apetece rebolar  com as horas. É assim uma espécie de desalento, talvez uma fuga para novos pontos de encontro. Chegando lá, ouvirei o tic-tac, tic-tac dos ponteiros do relógio, e saberei ao certo aperfeiçoar os meus tiques que começam já, a dar mostras de algum cansaço. É que, quanto mais procuro a perfeição, mais imperfeita eu pareço.


Dolores Marques; Dakini in Eventos 2013

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Exageradamente

Tudo cansa
O exagero chega a doer
Por tão exagerado ser, o mundo,  nas mãos fechadas ao seu próprio mundo
Até o cheiro a incenso à porta das igrejas, se esbate nas indumentárias acabadas de chegar
Até os santos se descuidam e deixam cair o rosário nas mãos dos pecadores

Tudo cansa
O exagero poderá até ser, a doença do último século que irá chegar
Até as mãos levantadas para o céu, me deixam anestesiada
Não têm dedos para apontar na direção onde os pobres deixaram de rezar

Tudo muda de cor
Já as contas do rosário se transformam em mundos obscuros
O mundo do avesso, nem sequer é avesso ao submundo - o lugar onde todos cumprem promessas falsas aos olhos de Deus

Tudo cansa
Nem se consegue imaginar, o exagero daqueles que dormem de olhos abertos
Tudo se afunda nas linhas cruzadas das suas mãos, até que cheguem os novos povos
Irão povoar a terra com novas cores
Porque tudo cansa
E o exagero chega a doer
Por tão exagerado ser
O mundo virado ao contrário
Os submundos onde ainda moram todos os exageros de não se saber ser
Porque tudo cansa
E o exagero chega até a doer

Dolores Marques – Dakini 2013

Correntes

Vou agora entrar nos ecos fundos de uma cidade às escuras, apesar das luzes dos candeeiros. Tudo se move mas nada mexe com nada, a não ser com alguns gritos mudos, calados e frios, pintados nos muros. Os grafitis invadiram todos os lugares, onde o frio é corrente morna nas mãos dos poetas.
DM

Procura

A falta de inspiração, leva-me numa procura de mim, em qualquer folha ainda em branco, de um livro que escrevi em tempos. Vou folheando as suas páginas, e aguardo que elas me digam onde me perdi. Elas caladas, nem ousam respirar, para que nada, mesmo nada me possa levar a criar algo com base na sua clara nudez. Translúcidos são os momentos, que consentem nesta vã procura. Sem ela, seria só um pequeno ponto circunscrito nas tábuas rasas de um chão sem cor. 


DM - Dakini

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O QB dos nossos dias

O QB dos nossos dias.

É incrível a transformação que se vê em cada flor, desde a formação do botão, até ao desabrochar das pétalas, até mesmo quando se acaba nas nossas mãos, quando a cortamos pelo caule e a depositamos num belo vaso de cristal. 
Cristalizou-se tudo o que fez da flor uma flor! Até o nosso gesto se transformou, porque não sabemos, que, ao cortar uma flor pelo caule, estamos a cortar o ar que ela respira e lentamente, vamos também deixando de respirar. Incrível, a transformação que certos ”ares” provocam em muitos de nós, a cortar o ar que respiramos sem dó nem piedade. 

Estranho este sentir pela metade. Cortar flores, oferece-las os vivos e aos mortos, e não sabermos o que nos faz caminhar, ainda em prol de uma única flor - a nossa humildade baseada na capacidade de continuarmos a ser simplesmente nós e deixarmos as flores serem flores. Sim, mesmo apesar dos cristais, e das mãos abertas ao tudo que nos faz “inchar” e não saber regular o ar, que deverá entrar e sair na medida certa. O QB dos nossos dias.

Dolores Marques – Dakini 2013

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A vida ainda é uma criança, ou a criança é a vida?

A vida ainda é uma criança, ou a criança é a vida? – Um diálogo interessante com o meu neto Afonso

Depois de algumas brincadeiras na praia, e uns quantos mergulhos nos pequenos lagos, regressamos para um piquenique debaixo da sombra dos pinheiros. A euforia era muita. Os meus netos, Guilherme, Afonso  e Tomás, numa tarde de domingo a dar largas à sua imaginação de crianças. Vasculhavam tudo, o que a seus olhos, despertasse curiosidade. Após o almoço, alguns jogos, e outras brincadeiras, que se pudessem ter em cima das mantas estendidas no chão, para também, descanso do corpo, pelas horas que passámos a pisar a areia da praia. 
Era chegada a hora de regressar. Enquanto todos tentavam arrumar as tralhas nos sacos, eles arriscavam ir mais longe. Para não se afastarem muito dali, eu tentava atrair a sua atenção para o que havia caído no chão. Pedia-lhes para procurarem pinhas. Fiquei curiosa para saber se eles as reconheciam todas, dado que algumas tinham caído dos pinheiros ainda bebés e não se encontravam abertas. Para a sua tenra idade, tudo é o novo, tudo é conhecimento de vida, mesmo a que vive nos galhos dos pinheiros. Após alguns minutos, todos eles tentavam pegar as pinhas que encontravam, mas sem sucesso, pois as suas mãozinhas ainda pequenas, não conseguiam pegar em mais do que uma, para me trazerem

Chegados ao local, onde iriam ser sentados e bem aconchegados nas suas cadeiras dentro das viaturas, eles faziam tudo para não entrar. O Gui virava-se para um lado à procura de mais descobertas, o Tomás, corria à volta dos carros em círculo, e o Afonso, simplesmente parado, junto ao tronco grosso de um pinheiro. Sem sucesso para os conseguir demover das suas brincadeiras, reparo no olhar do Afonso, com a cabeça muito inclinada para trás a tentar furar com o seu olhar, todos os espaços em branco que os ramos dos pinheiros deixavam quando da sua disposição; ora para os lados, ora para cima, direitinhos ao céu. Os seus olhos estão fixos num ponto. Penso que estaria a pensar.
“Será que o céu descansa em cima dos últimos ramos daquele pinheiro?”. E ele próprio estaria a ver como conseguir tocar o céu?, pensava eu. Aproximei-me, mas ele não desviava a atenção daquele ponto.  Não dava sequer pela minha presença. Disse-lhe:
-Já viste Afonso, como é gigante essa árvore, com um tronco enorme. Tem já muitos anos que está aí.

Ele olha para mim e pergunta-me:
- Sabes porquê avó?, ao que lhe digo, - Não Afonso, não sei, diz-me tu.
Ele, muito prontamente afirma:
- Avó, ele cresceu assim porque bebeu muita água.
- Pois foi Afonso, ele bebeu muita água para poder ter esse tamanho. Foi o que consegui dizer-lhe, porque de seguida dirige-se para os pais que o aguardavam para entrar no carro. Seguimos viagem. 
Em casa, eu conto à minha filha Milene o diálogo com o Afonso. Este foi curto mas com todas as palavras que ainda ficaram por dizer. A Milene contou-me, que, nas férias estiveram em contato com a natureza e que abraçaram muitas árvores. Os pais ensinaram-lhes (a ele e ao irmão), que devemos proteger a natureza, porque  as árvores para continuarem a crescer, precisam de beber muita água, e que por isso, não a devemos desperdiçar.

Lição aprendida e apreendida, penso eu, pois o Afonso não perdeu oportunidade de ma transmitir, para que também eu a soubesse.

(Até quando nos manteremos na ignorância, quando vemos uma criança de 4 anos a dar-nos lições de como proteger a vida, que de ignorante só tem aquilo em que nos transformamos - UMA ÁRVORE COBERTA DE PEQUENOS GALHOS JÁ SECOS).


(Dolores Marques/ Afonso Faria )


terça-feira, 1 de outubro de 2013

O vento a soprar na pele das árvores


Para uma criança, com três anos de idade, as folhas macias, acabadas de nascer nas árvores, são a pele das árvores.
Dizia-me o Tomás, meu neto mais novo com 3 anos de idade. Era um fim de tarde em que o vento se fazia sentir. 
-Avó porque as árvores abanam tanto? Estava vento naquele dia e até ameaçava chuva.
Respondi-lhe que era o vento. E que ele sabia disso também. Já mo tinha dito, um dia em que da janela, ele via as árvores a abanar. Cedo entendi o que me queria dizer de novo. Uma nova descoberta, que também eu, precisava saber. Voltou-se então para mim dizendo:
- Avó, sabes que as árvores têm muitas cores? Respondi-lhe que sim, mas fazendo-lhe outra pergunta:
- E tu Tomás, sabes porque as árvores estão agora com muitas cores? 
Ficou em silêncio durante uns segundos, até que eu lhe disse que a primavera tinha chegado. Responde ele:
- Pois avó, é a primavera! E as árvores são verdes, cor-de-rosa, vermelhas, amarelas, azuis... Tás a ver Avó?
Volta a insistir no início desta conversa, sobre o movimento que o vento criava nas árvores. 
- Avó, sabes que o vento está a soprar muito na pele das árvores? Eu olhei-o bastante curiosa perguntando-lhe como era a pele das árvores. 
- Avó, a pele das árvores são as folhas. Tás a ver as folhas daquela árvore? São verdes.
De seguida coloca a mão de fora da janela do carro e diz-me:
- Avó, o vento também está a soprar na minha pele. Vês? Ta a soprar!

E assim foi a viagem de regresso a casa, no final de mais um dia em que fui buscar o meu neto Tomás ao Colégio


Dolores Marques / Tomás Severino 


Onde ficou a lua Avó?


Tinha ficado com os meus dois netos, Guilherme e Afonso. Um final de dia quente. Um início de noite que convidava ir até à varanda. Correram de um lado para o outro até se cansarem. Por fim, vieram sentar-se junto de mim. Aguardavam que algo mais, os pudesse despertar para novas descobertas. A vizinha, uma criança com quem de vez em quando trocavam conversas, já se tinha recolhido. Mas eles não estavam dispostos a cumprir com o horário de se deitarem, como era hábito com seus pais em casa. Sentia-se já a aragem fresca da noite. Tentei levá-los para dentro, mas eles preparavam-se para mais umas corridas nas suas bicicletas. Tinha que os demover, tentar acalmar os ânimos, para depois os convencer a entrar para que dormissem. Era já tempo!

Chamei por eles para lhes mostrar uma descoberta no céu. O primeiro a chegar foi o Guilherme. Pergunto-lhe:
- Gui, olha como brilha aquela estrela no céu!
 Ele fica a olhar a estrela muito brilhante. De seguida, os seus olhos tentam vasculhar outras estrelas. Eu insisto:
- Gui, consegues descobrir a lua? Ele olha com muita atenção e diz-me: 
- Avó,  já encontrei a lua. Consegues ver? Está ali, indicando-ma com o seu dedo minúsculo. 
O Afonso olhava o céu, mas em silêncio. Alguns minutos depois convenci-os a entrar em casa para depois os deitar.

Um ano mais tarde…

O último dia na praia, deixou marcas na areia. O Afonso, com as suas mãozitas, tentava a todo o custo, fazer um buraco tão fundo, que às páginas tantas, se desequilibrou e enfiou o braço todo nele. Pediu-me ajuda para o puxar para cima. Eu, já não via a hora de ele desistir de cavar mais fundo naquele piso duro, húmido e arenoso, resolvi abrir alas e descobrir algo com que pudesse despertar-lhes atenção. Foi então que vi um galho seco de um arbusto. Desafiei-os para desenhar o sol na areia. Desenhamos o sol, e até cada um deles: primeiro o Guilherme e logo de seguida o Afonso, assim como o pai, a mãe e até eu própria. Deslumbrados com a sua capacidade para desenhar figuras na areia, não queriam outra coisa. Por eles ficavam ali o resto do dia.

Uma semana após este episódio na praia, e já em casa, o Guilherme olha-me nos olhos e pergunta-me; 
- Avó, lembras daquele dia na praia? Ao que lhe respondi, 
- Sim lembro, porquê Guilherme?
Ele sorriu e disse-me: 
- Pois avó, foi tão divertido!
Nesse final de dia, da mesma varanda, vi o Guilherme muito atento a olhar o céu. Perguntou-me.
 - Avó olha tantas estrelas no céu. 
- Sabes porque o céu tem esta cor? Pergunto-lhe - Qual a cor do céu? Ao que ele de imediato me diz:
- Avó, é azul-escuro, porque é de noite, mas de dia tem outra cor - azul claro. Sabes porquê avó? Porque de dia há sol. À noite chegam as estrelas e a lua. Mas avó, hoje não se consegue ver a lua. Onde ficou a lua Avó?
 Observo-o a dirigir o olhar para as nuvens que impediam a lua de iluminar os seus olhos. De novo se dirige a mim:
- Avó não se vê a lua, porque aquelas nuvens não deixam, mas quando ela passar para lá, já a podemos ver. Vamos esperar?
Entendi perfeitamente. Para além de me querer mostrar a lua, queria também mostrar-me, que ainda era tempo para mais umas brincadeiras antes de ir dormir.

(O tempo, é ainda para o pensamento de uma criança, também uma criança inocente. Nós utilizámo-lo como desculpa, quando queremos que o tempo pare aos olhos dela)

Dolores Marques / Guilherme Faria

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Pura e simplesmente

A tua alma não pretende ser invernos frequentes nos teus olhos, nem outonos em demasia no teu corpo. A tua alma não se propõe ser eternamente verão na tua visão, nem primaveras constantes nas tuas mãos. 
A tua alma só deseja que te abras à mudança e que sintas a transformação. Renovação Interior. A alma não precisa de muito mais do que sentimento. A alma é um cruzamento de dados, que estabelece um elo de ligação ao movimento circular interno, semelhante à vida que nos deu vida. A evolução faz-se caminhando, no único caminho, onde nos leva sempre a nossa alma.


Dolores marques - Ônix

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Desencontros

Andava sempre a cirandar pelas ruas. A noite era a sua companhia. Alimentava-se nos escombros, onde outros pernoitavam. Roubava-lhes os sonhos, esquartejava-lhes o pensamento, sugava-lhes as memórias. Mas, de nada adiantava. Nem as ruas reconheciam o seu desejo de se sentir gente nas ruas. 
Era tamanha a azáfama que se esquecia de si. Já nenhum beco esquecido em alguma rua, aceitava os seus passos. Assim, continuava a caminhar sem destino, até que este, decidisse aparecer para cumprir a profecia. Foi então que se deu por feliz, quando as ruas lhe fizeram a saudação. Finalmente abriu os olhos à luz que lhe indicava tantos outros caminhos. 
Ignorou e continuou a insistir naquele que escolhera, até que chegou por fim, ao final do caminho. Ansiosamente esperando por mudanças, mas resignado à sua condição ignóbil, descansa ainda o seu corpo da última jornada. Foram tantos os desencontros. 
Encontra-se agora a sua alma rondando o espaço que ocupa. Esperando…. 

Dolores Marques; Dakini

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Como era cheia de luz, a terra e o vale---(Mileta Menezes e Dolores Marques)

.Escolhi o som do céu para vos agradar, o refrão é feito das raízes das glicínias onde aqui passou a história. Lembras-te? Como era cheia de luz a terra e o vale onde ao fim da tarde perseguíamos o som do alaúde, tu lembras-te?
...parecia chegar de um lugar incerto. Mas não. Esse som tecido nas vozes todas que não tinham chão e nem pão. Reza a história que era um vale silencioso mas profícuo, e a eira batizada sempre com as grossas pingas das novas chuvas. Lembras-te?
Nunca esquecerei, tão pouco, os fantásticos sons provenientes das trovoadas, dizias sempre que era o céu zangado com o mar, ainda recordo.Que culpa terá a eira! Que culpa teremos nós!? Num monótono gemido respondia-te o meu coração, só para não teres medo. Sim, são os vales da memória, que ainda se reencontram aqui! Vê, lá longe o céu a ganhar voz! Parece que vai voltar de novo a chover. Anda..que a nossa ausência é eterna e o Mestre, já está a fazer- nos sinal.
Ouvia os sinais que vinham de longe. Inexpressivos, mas soalheiros como os finais de tarde num outono já passado. No mar caiam tempestades e os meus olhos fechavam-se àquele lacrimejar longínquo. Afundava então o silêncio na nudez do vale e aguardava para chegar mais perto do céu. Ainda que demore, sei que não se fará tarde. Agora tudo se torna mais claro nesse azul profundo.
Longe, digo eu, ainda está esse destino que a lonjura da vida nos ausenta, mas as estrelas há no mar e também no firmamento, e sobre elas o mesmo sol intenso, que nos arrasta de encontro à vida. Por isso mesmo estão aqui, referia-se a tia Júlia, todas as nossas gerações. Devereis permanecer, como o cipreste que vos viu nascer e assumir o tempo que vos resta do disco de vinil. Páre, tia Júlia. Você sabe que somos sempre a verde do campo e do vale e que a nós não pode fluir o pão. Nem o barro se molda às nossas mãos e você sabe porquê. 
A fome que o corpo reclama, nem sempre se compadece com a verdade com que se assumem as estrelas no mar. A tia Domitília também dizia que a permanecermos aqui e assumirmos o nosso tempo, seria como cavar a terra e deixá-la a realizar o seu último evento, ao relento. As sementeiras irão chegar, o sol saberá como realizar a vontade da tia Júlia, até porque o tio Manuel do forcado, sempre soube levantar-se de madrugada, para dar as boas vindas ao sol. E até que tia júlia acordasse, ele já caminhava lá para os lados do vale, com as mãos abertas e os olhos fechados. Até que, se deu o milagre do sol…
… e desses raios de sol apenas resto eu, o vale e a eira, não, não me olhem dessa maneira, pois nem a dúvida vos acolhe, fez-vos noite súbita e densa nas vossas curtas vidas. Acaso a vossa presença poderá modificar o silencio da eira de onde a morte vos pendeu? Joana e Mónica, sei que o protesto da vossa aparência desabrocha nesta casa, enche-a de céu antigo, de tons jovenis, de tons que nunca esqueci!! Bem sei Tia Julia, mas a terra é a mesma, é nossa, a manhã estremece até que o alívio da luz nos procura, eternamente por todos os lugares. E tu Mónica, não te queixas do mesmo que eu? Tia, toda a eternidade é nossa, suspira e ergue-se por ti!!! 
...enquanto por aqui andar, serei eternamente grata a todos os que me quiserem sentir. Mas a Maria dos Prazeres terá ainda muitas vidas e onde se procurar até se encontrar. Sabia de todos os momentos doces daquele sol a deitar-se na eira. O trigo dourado esperava por algum raio de sol para se propagar e de novo encher os campos, a par das papoilas. E eu, simplesmente esperava....
…ouço-a cantar, és tu Mónica ou é a Joana? Quem a canta mais que a vida? É o campo ainda a sonhar no azul limpo da madrugada!! Ou talvés seja a lida das folhagens sobre a alma? Ondula incerta em mim ainda a razão daquela luz incandescente que vos fez cantar para além da vida! Se eu pudesse ser a consistência incandescente do céu quando o poente desce a fino ouro, aquele que nos envolvia, oh céu! Como ainda o sinto! - Dizes bem, Joana, o seu braço ao teu redor, ao nosso, os seus beijos,os seus abraços, que nos fazia esquecer a ceia da tia Julia. Ah, poder ser “tueu” de novo!! Nós.
…caminhava sempre ao seu redor. Já nada via para além de nós. Somente um grupo faminto de lobos que descia da montanha. Joana cantava hinos ao sol até que as estrelas descessem sempre na madrugada. Lembravam-me a manhã que chegava cedo, mesmo que não se ouvisse a minha voz. Esta minha loucura dispersa por todos os cantos deixava-me sempre desligada de tudo. A vida é um círculo imenso. A minha voz já não é o que era. São timbres desafinados, notas esquecidas. Madrugadas silenciosas. E eu cantava baixinho numa escala enfurecida, ,até que te visse chegar..
São memórias consagradas aos meus ouvidos, que a idade não as faça perder, porque a minha vista também já não é o que era, por isso a recordação é a minha consolação, são os meus olhos e já não precisam de socorro. Quereis o quê com esta minha idade de 85 anos? Amanhã preciso de ir à eira para dar continuidade à obra da terra. A saudade me espera e lá a amargura dilui-se derradeira . Pode ser que chova e a água plante ao nascer, uma raíz qualquer e eu me vença por lá e volte de novo a nascer!! 
..quero, desejo nascer de novo. Que seja através das palavras, as que se escrevem, e até as que ficam no baú de histórias ainda por contar....aguardo uma nova história.

Autoras:
 Mileta Menezes e Dolores Marques
Imagem::
Isabel Silva

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Ciclos

Terminar
Como todos
Os movimentos
Circulares
De um ponto
Nas sombras
Inscritas
Nas paredes
Em branco
De um salão
Onde se poderá  ler:

final do verão
início de uma nova estação


Dolores Marques - 2013

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Apresentação da autoria de Graça Pires, no lançamento de: Homem-Árvore

Apresentação da autoria de Graça Pires, no lançamento de: Homem-Árvore
"“Homem-Árvore” Carlos Teixeira Luís´

Sábios os caminhantes
os que não param na sombra
nem na curva da estrada verde  […]
Assim começa o livro Homem-Árvore de Carlos Teixeira Luís.
É o 3º livro do poeta, que publicou em 2008 Tijolos de verde rudee em 2009 Histórias do deserto.
Homem-Árvore. Qual o motivo da escolha deste título? Nos interrogamos todos.
Sabemos que a direção da luz e do vento indicam de que lado irá crescer uma árvore. A luz e o vento são metáforas que assentam bem na comunicação estabelecida entre estes poemas que associam intimamente a vida e a linguagem.
 […] um homem árvore feito raiz mistérios de luz que a poesia sublima[…], refere o poema da p.42 ou, então, lemos na p.74:
Quando o vento oferece árvores
ao meu caminho é a hora tardia de
fechar os cantos de sombras do bosque […]

Homem-Árvore. Porque, certamente, a poesia transmite, à vivência do autor, a verticalidade de um tronco que não verga perante a inconsistência dos sonhos.
Falar de poesia é uma tarefa problemática, mas muito estimulante.
Não vou entrar em análises teóricas ou técnicas. Vou ficar-me pelas emoções, pois os poemas têm o poder de reconfigurar os nossos sentidos.
O autor poderia dizer como Herberto Helder: “A manhã começa a bater no meu poema. As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores líricas. Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema”.
Penso poder afirmar que, neste livro, a poesia é o fio condutor de todo o texto. Como se fosse poesia da poesia que ajusta a estética a uma ética pretendida. Nele (no livro) se esconde e se revela um dinamismo singular, em que os poemas se abrem à nossa sensibilidade, atingindo frontalmente quem os lê.
Podemos seguir o poema da p. 14.
Ninguém dá por nada – pelo fio de luz
da janela ao canto do móvel com memórias
retratistas pelo choro na madrugada fria de gente
pelo gemido pelo último gemido dum crepúsculo
pelo brilho da calçada e dos passos corridos
para a estação das névoas pelo sorriso tímido
duma mulher feliz que diz adeus com a sua sombra
pelo gato que já não caça o pó dançante
porque adormeceu pelo poema fechado
no abrupto mundo do livro esquecido
Ninguém dá por nada até darem por si 
no olho do furacão e serem domesticados
pela própria borrasca.

Nas palavras de Carlos Teixeira Luís somos levados, de forma subtil, numa peregrinação da linguagem, em busca da compreensão do mundo. Linguagem, essa, que é como um fio inesgotável a tecer os dias.
(O poeta finge seu mundo e seu mundo finge que merece o poeta, nos alerta o autor no poema da p.16.
Mas essa busca, que traduz o seu imaginário, é uma busca ansiosa. Um pretexto para nos apresentar a vida em linguagem poética, nos incluir nela e a sobrepor às lembranças que nos cabem. Leia-se no poema da p. 38:
Procuro um tema procuro o tema
não sou nada sem outros será o meu tema 
os outros […]

No entanto, há um cruzamento de vários temas representando um vínculo entre a imaginação e a memória, ou as nostalgias que captam a luz e as sombras.
O poeta recusa o lirismo que se abstrai dos outros, da vida concreta. Porque a poesia quer-se dádiva, promessa, testemunho, aviso. A poesia está atenta às circunstâncias da vida que formam e informam o poeta.

Mesmo não tendo em conta o sentido biográfico, podemos analisar estes poemas como uma projeção da vida na forma como espelham as angústias, a confiança, o modo de estar no mundo.

O poema é melhor que o poeta. Quem o afirma é o autor (p.23) que reclama na poesia o seu espaço criativo, o seu lugar de liberdade, indiferente ao desdém e ao “verbos daninhos” já que
[…] Loucos são os poetas que dizem e
tornam a dizer o indizível são loucos
porque inventam novas palavras para a
palavra amor que ainda seja amor […] (p.32)
Em alguns poemas do livro há a introdução de personagens que servem de mediadoras do poeta que as faz emergir na cena do poema e lhes dá a palavra.
Por ex.: (p. 53) GRITAM AS MULHERES: - eles
matam a rua sangrando-a A guerra
a guerra dos dias travada assim tão impoluta
a guerra que nunca mais nos serve
mas nos sorve.

Ou lamenta o NARRADOR: - 
Volto aos mesmos passos
para onde vou? nem deus nem o diabo
sabe que as pernas calcaram todos estes caminhos de pedra esquecida […] (p.57)
É como se o autor falasse através do sentir das personagens, recuperando, ao mesmo tempo, a sua própria voz, numa espécie de diálogo-monólogo, que imprime aos poemas um ritmo inesperado.
Falar de poesia é uma tarefa problemática, repito.
Falar da poesia deste livro é saber descobri-la. É deixarmo-nos surpreender porque Somos corrente contínua de sangue nervos e sonho (p.19) e Somos folhas de árvore sempre verde. (p. 37).
Podemos, portanto, conceber a leitura deste “Homem-Árvore” como um cerco de sonho e de vida. E de poesia naquilo que ela tem de secreto, de sublime, de absolvição e horizonte de esperança.
[…] Sábia a ode velha cantada por todos 
os ventos mesmo os ventos da noite (p. 26).
Escrever poesia é um acto íntimo onde se confundem a solidão e a partilha, a memória e a emoção.

É o que nos revela Carlos Teixeira Luís, a quem não é alheio o saudável convívio com a leitura de poetas em cujo universo imagético se reconhece.
então retorno ao meu secreto caminho
todas as sombras do bosque nascerão
mais uma vez num novo setembro (p.79)
É com estas palavras que o autor acaba o seu livro.
E eu termino também porque não é necessário acrescentar mais palavras ao sentimento do poeta.
O livro está aqui. À espera que o leiam. Desejo que esta breve apresentação ajude a atrair sobre ele olhares interessados, críticos e cúmplices.
Obrigada.
                                                       7 Setembro 2013
                                                         Graça Pires"

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Além do nada





Nada se sabe
não se pode ainda 
saber nada
nada se define
mas tudo pode ser
e até acontecer 
se tudo quisermos ser
e ver além do nada 
que somos

Dolores Marques - Ônix 2013

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Do ventre da terra, ouvem-se rumores

 Lamentavelmente os sonhos caem. Os pedaços repartidos, vivem assim no meio dos escombros. 
Vertiginosos são todos os lugares onde apoiam o corpo.
Longínquos são todos os horizontes onde descansam os olhos.
Imensos são todos os lugares, mas desprovidos de luz.
Grandiosos são todos os abraços, mas destituídos da magnitude dos gestos.
Sublimes, são agora todos aqueles que se preparam para cair na desordem e orientar as massas.
Caminhantes para um único fim, onde a esperança já cría raízes profundas. 
Do ventre da terra ouvem-se rumores de um tempo que irá chegar: sossegado, iluminado, espalmado num chão novo, com aromas a terra fresca e regada com as novas chuvas do outono.



Dolores Marques  ÔNIX- 2013

Sabia mas não via

Sabia que tudo o que desejava estava mesmo ali em frente dos seus olhos. Sabia mas não via. Nem mesmo com aquela luz toda a furar-lhe as retinas se convenceu.  Era a tal verdade que nascia breve, mas cedo se finava, por só caber nos intervalos das pestanas. 
Com uma escova fina tentava desembaraçá-las, e até esticá-las, elevá-las para cima. Mas, de nada adiantou. Ela descansava agora nas suas pálpebras, já meio descaídas, sofridas.

Fechou de novo os olhos e tentou a todo o custo visualizar uma luz. Uma luz por pequena que fosse, no meio daquele círculo fechado e negro. Lembrou-se da cor do chumbo que seus pés arrastavam pelas pedras negras e gastas.

Num impulso, abrem-se para a verdade nua a crua: estava ali escancarada na sua frente. Sem hesitar cerrou de novo os olhos. Momentos depois, voltou a abri-los para ter certeza da sua última visão. Nem mesmo assim acreditou e voltou a trancar-se, mas agora, por entre traços que assumiam a forma de um quadrado. Ali se silenciou.

Assim ficou o resto dos seus dias. As dúvidas dissiparam-se, quando por fim se abriu à  luz que cuidou de tudo o resto.

Dolores Marques – Dakini 2013

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Iluminado o rosto do tempo



Esperava sempre pelo pão na minha mão. Quente a sair do forno.
Dourado tal como o sol que fizera amadurecer as espigas lá nos campos.
Fazia tudo com aquele jeito meio desajeitado, mas tão simples e natural, como é à noite: o nascer e o pôr da estrela, o virar das águas, o esperar pelas hora das levadas, o falar do tempo e para o tempo.

Separava as carquejas secas e ateavas-lhe o fogo, que esvoaçava em brandas chamas por entre o cruzamento dos seus braços. 
Iluminado era o rosto do tempo.
Ateado o chão das searas.
Consumido o tempo das colheitas no meio do milheiral.

(Havia espigas de milho espalhadas ainda pelo chão, e casulos secos para ajudar a atear o fogo.)


Era o pão de cada dia nos seus braços.

Era a pedra dura e ressequida a tapar o forno.
Era a bosta de vaca nas minhas mãos. Pedia a todos os santos que não ma mandasse ir buscar. 
(Fechava os olhos, enquanto com uma mão tapava o nariz, e com a outra, tentava arrancar do meio de um bosteiro imenso, o suficiente para selar a porta do forno.)
Digo bosta de vaca, porque ali, só elas puxavam o arado e o carro cheio de estrume para adubar as terras. Os bois, havia-os para cobrir as vacas. (Disso nem lembro muito bem. Ela não me deixava ver.)
Era tudo menos tédio naquele espaço. O fumo enchia o ar, até chegar aos meus olhos e os fazer lacrimejar.

E agora tudo é distante. Tudo se esfumou no tempo.
Tudo se lê nas paredes novas, rebocadas e pintadas de branco, “o Fim de um ciclo e o inicio de pouco mais que nada”.
Já não espreito a lua nem as estrelas pelas frestas das lousas, que compunham o telhado de xisto.
Já não vejo o alambique a funcionar.
Já  não vejo a água, fazer girar a mó do moinho lá em cima no monte.
Já não vejo a água, fazer girar a mó da azenha, e nem sinto o cheiro nauseabundo das azeitonas moídas, lá em baixo no barroco.

Agora tudo é anestesiante. 
Até às margens do rio se deixam corromper e se mostram nuas e oferecidas à nova flora. Dizem que são sinais da evolução, sinais dos novos tempos.
Tudo embarca na mesma poluição, aquela que corrói os caminhos forrados de alcatrão.
Tudo se move em sentido contrário.

Já não vejo as marchas fúnebres, nem ouço o bater das batinas dos padres no chão.
Já não sei como é o cheiro a incenso, quando bato à porta da Igreja.

Já se foi o verão, e com ele, o outono a cair nas mãos do destino.  
Rá tomará conta de si
Já a primavera se mostra tímida, com receio de se sumir por entre nortadas fortes. Chegam muitas vezes em Agosto e arrasam tudo. 
Uma desolação para que não haja pão.

Para onde irás,  agora rosto iluminado pelo tempo? Serás monumento ou simplesmente ruinas e cinzas espalhadas, a  Fénix esculturalmente aceite pelo teu chão?

Dolores Marques - 2013

Não esqueça de visitar http://terrasaltasdogranito.blogspot.pt/

terça-feira, 30 de julho de 2013

Um fundo



Quero a morte, mas nem por sorte 
Se apresenta como pano de fundo
Não é minha, e nem é tua, a morte
Apenas e só, um ser moribundo

Vejo agora um fundo, que ao fundo 
Já nem sei se é luz ou se reluz 
Mas por sorte, será a morte um mundo
À parte, que me quer só, na sua luz

Já disse!Quero a morte que nem por sorte
Já não é minha, e nem é a cruz
Neste fundo, já nem s’afunda a morte
Ou se lamenta, ou sequer, se traduz


Dolores Marques (Ônix)- Eventos 2013
Foto tirada em; Cabo Espichel

Templo de Aton



Deixa que te siga
Para que te sinta
Divina, Nefertiti
Na veneração 
Ao Deus Único
Escultor das ideias
Arquitecto Maior
Das esfinges
Que anunciam
A nova ordem
Uma nova era
Ainda por descobrir

Rainha da sabedoria
Rosto estampado 
Na beleza das águas
Límpidas e férteis
Correntes do Nilo
Nas areias do deserto

Dolores Marques - Ônix 2013

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Dor

Acima de um pensamento desequilibrado, está a sua maior dor, que é saber-se a cair em algum lugar; sem cura milagrosa, sem chão para se firmar, sem terra e sem pão para se alimentar, e, sem ar para respirar, até que chegue a nova ordem das coisas mais simples e naturais: a vida e fragmentar qualquer sentido obrigatório de um pensar desajustado.

DM, Dakini - Eventos 2013

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Porque ainda há cheiro a terra

Há um dia a mais
E uma noite a menos
Nem a chuva cai
E nem o sol se vai

É sempre assim quando o dia nasce
E com ele, vontades novas
Porque ainda há cheiro a terra
Sempre que o verão se abre
Ao morno outono


Dolores Marques - ônix

Portais

Amanhã quando já cá não estiver, não esqueçam que não existe diferença, entre estar-se vivo ou morto, há sim, uma anuência de todos os eventos: os passados, os presentes e até os futuros.

Dolores Marques - ônix
Foto: Dolores Marques

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Tranquei a noite

Esta noite, tranquei a noite no seu próprio espaço. Fechei-a a sete chaves e risquei nas paredes brancas, um único traço dentro de um circulo imaginário, contrariando a imagem refletida daquele lugar .
Cansou-me aquele espaço com paredes nuas e as roupas bem passadas a ferro, guardadas nas gavetas e penduradas nos cabides dos roupeiros. Abrem-se as portas destes, e há dias que me parece saírem de lá de dentro, fantasmas com cores distintas - os engomadinhos do passado. Lá, não existem, nem gravatas e nem chapéus, caso contrário, poderia até imaginá-los pendurados nos círculos traçados nas paredes – espantalhos num pano de fundo branco.

Em suma, decidi-me então por outro com as paredes já pintadas de vermelho. Dá para sentir que ali, é um bom espaço com um pano de fundo virado para futuro. É um espaço, onde ainda se podem construir sonhos, se me lembrar de outros que se batizavam com água benta de todos os domingos em que não se ia à missa. A moldura pendurada na parede, exibe ainda um rosto cândido, uns olhos meigos, e por sobre o cabelo, uma tiara feita de flores naturais que se destacam sobre uns cabelos negros. Colado ao corpo um tecido claro de cetim, realçando as mesmas flores em tom dourado.

Só não sei ainda, se em cima das paredes pintadas de vermelho, cairá bem uma ou outra tela, onde despejei alguns tubos de tinta e as deixei ao abandono.

Preciso escolher as novas cores! Antes, não tinham um espaço. Tinham sim, um sítio onde se encontravam com alguns pontos brancos no “epicentro” da minha vontade. Era mais do que nada, talvez um ponto negro gigante – furúnculo a sumir-se por entre a tez branca e esquelética de um espaço em branco.


Dolores Marques – Dakini –Eventos 2013

terça-feira, 25 de junho de 2013

Veneno




Como conseguir terminar uma tela, na qual se traçou o pior do perfis?
- são linhas tortas
- são pontos escurecidos
- prazeres camuflados
- olhares dissimulados

 Enfim o olhar de quem a criou!

O seu autor, que ingenuamente bebeu do veneno que o fez lançar-se em desatino pelas negras cores, irá afogar-se no próprio veneno que sua boca ingeriu.

Dolores Marques – Dakini Eventos/11

Condenados

A vida é muitas das vezes uma cadeia onde habitam várias surpresas, enredadas e desorganizadas num espaço trancado e enlameado.

Há condenados que nunca chegam e perceber porque cometeram determinados crimes, já os que os percebem, tentam a todo o custo resolvê-los dentro de si. 
Contudo, num espaço fechado, não sabem como deixar de olhar fixamente para os muros frios, escuros e pesados.

Dolores Marques – Ônix Eventos 2013


Tela de Vincent van Gogh

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Vendeu a alma ao diabo

Vendeu a alma ao diabo. Vendeu-a por pensar que aquela transação iria culminar com a morte do tão afamado anjo das sombras. Viver na sombra era para ele fácil, até chegar ao ponto de decidir vender a sua própria alma. E porque nas sombras, só vigora a lei da sombra, ingenuamente pensou que a sua alma passaria despercebida e que nem o próprio demónio se lembraria dela. 

Enganou-se redondamente, porque se a união faz a força, também o diabo se precaveu, ao acumular cada vez mais almas,  que desejavam obter mais-valias através da venda das suas próprias almas. 

O resultado desta transação ainda não viu a luz do sol, porque as sombras têm-se acumulado com passar do tempo. Quem vendeu a alma ao diabo ou quem a pretende vender, ter
á que esperar ainda que lhe seja concedida passagem para o outro lado, para depois lhe ser devolvida a sua alma intacta. Será aí que irá saber de que cor é a alma ou almas que o diabo carrega há milénios.


Nota; devem estar a pensar que a imagem não é apropriada. Será? Mas já imaginaram como ficaria a minha página se vos colocasse perante o óbvio, perante a imagem que poderia revelar este tipo de transação?

Dolores Marques, Dakini – Eventos/13

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Porquê Poeta?

Chegou a noite. Esse momento distinto esse entardecer na memória, o querer saber o que se foi, o que se é 

e o que se pode vir a ser. Não se sabe nada da noite; se é triste ou alegre, se canta, ou se dança ou se é a musa dos poetas. 
Porque os poetas escutam os silêncios da noite? 
Só a noite os reconhece nesse abandono, nessa triste sina de não poderem ser donos dos seus próprios silêncios.
Adormecem vestidos e com os olhos abertos. 
Traem os seus próprios momentos.
Não sabem trancar as portas aos intrusos, aos vagabundos, aos agiotas.
Pertencem ao mundo dos vivos, e dos mortos-vivos.
Diz-me porquê poeta, diz-me porque tens em ti destinos doutros, que não o teu próprio destino?
Lamentas a guerra e a fome e a desordem natural das coisas mais simples.
És poeta das figuras abstractas, exaltas a fé 
dos que nem sabem o que isso é.
Mas sabes que há um tudo negro, assim como um tudo branco
e tudo tem a sua ordem natural de ser.
Porque o céu é “o céu” e a terra é “a terra”?
Porque o sol é o mais poderoso no universo? E a lua ali tão frágil na noite!
Poeta, poeta que me deixas nua e não conheces a cor da minha pele.
A noite é tão tua como minha e eu ainda não sei a sua cor. 
Já não entendo nada poeta. Nem sei porque o nada “é nada” e o tudo “é tudo” na tua voz poeta. 
Escuta os silêncios. Olha que eles fecundam a tua noite. Já agora porque não sugeres à noite que aceite ser cônjuge do silêncio? 

(Dolores Marques in Dakini - Eventos 2012)

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Quando foi...

Sabem quando foi que me esqueci de mim?
Foi quando todos fecharam os olhos e me abandonaram, como se eu fosse o céu

Sabem quando foi que os voltei a ver de novo?
Foi quando todos abriram as suas portas como se eu fosse a lua

Sabem quando foi que a noite se abriu?
Foi quando do céu , chegaram novos sorrisos  e voltei a ter quem me abandonou por perto

Sabem porque existem muitos olhos na noite?
É porque todos os olhares se cruzam enquanto dormem

Sabem quando foi que desisti de mim, e de todos os olhares que se fecharam no meu céu
NUNCA!


Dolores Marques ÔNIX
– Eventos/13


quinta-feira, 30 de maio de 2013

Só alma

Não me interessa se estás sentado, de pé, ou se o sol te beija, ou se lua agora te abraça, e se o silêncio é a tua companhia, se na meditação encontras alguma harmonia.

Não me interessa se o mar é perto, ou longe, ou se o horizonte te chama para ires em busca de tesouros escondidos.

Não me interessa nada disso, porque tudo isso são cenários onde ensaias os teus desejos mais profundos - os de não saberes onde te esconder da miséria que te abraça por todos os cantos escuros, onde teus olhos descansam.

Para que eu saiba, que esses são os lugares que teu corpo reclama, mas que tua alma solicita, diz-me só de um lugar, um só que saibas descrever como se fosses só alma e mais nada.

Diz-me então o que sentes e como te sentes, para que, fechando os olhos, te veja e te sinta também eu, na tua alma.

Dolores Marques – ônix – Eventos/13

quarta-feira, 22 de maio de 2013

O amor em pessoas



Este hábito diário de sairmos para a rua e perguntarmos, “tudo bem?”, por não sabermos como nos dirigir a quem anda de cabeça perdida sem saber onde encostar o corpo. Depois vêm os cumprimentos, responde-se, que sim, tudo bem, dão-se as mãos, beijam-se os rostos, entorna-se um pingo de café na roupa e segue-se rumo ao mais que conhecido mundo onde nos lamentamos, sempre que nos cruzamos com uma chuva a mais ou um sol a menos. 

“Hoje o dia está lindo, apetece sair por aí e colher sal das ondas do mar. Iodo e sol nas pernas fazem bem às varizes” dizem umas. 

“Pois mas nem sempre se pode fazer o que se tem vontade. É preciso trabalhar, é preciso”, dizem umas e uns.

Depois vêm os pombos esganados de fome a picar alguma migalha esquecida por entre as pedras da calçada, enquanto outros sobrevoam os barcos atracados no cais. Ali há fartura de tudo até que chegue a hora da partida. Enquanto isso, alguém esquecido de que, há vida já, a andar num rebuliço, para que à noite se coloque comida na mesa, se ajuntam, corpo com corpo, boca com boca, braços com braços. Depois tudo muda e até parece que cidade se transforma toda nas bocas de quem tem a sede de amor a escorrer pelos dedos.

Não deve haver nada pior do que acordar com um vazio matutino, encontrando-se perante uma figura estranha no meio dos lençóis dobrados. Nada pior do que abrir os olhos pela manhã e ver que o amor sumiu por um pensamento qualquer, que acabou de partir os vidros das janelas. Pode até pensar-se que ainda não se acordou, e que se vive num sonho que espera o som do despertador para nos trazer de volta à nossa realidade. Um vazio desdobrado, um sonho dentro de outro sonho. Pior é também acordar com um estranho na cama e momentos depois ouvir sons estranhos vindos da cozinha. Na noite anterior devem ter-se consumido, um e outro, e falado palavras ao ouvido, daquelas que todos gostamos de ouvir, mesmo que saibamos que são palavras ao vento. Às vezes dou comigo a pensar que o amor devia ter como denunciar estas cenas, e levá-las para um palco construído no meio do mar. O sal seria o único tempero de um sentimento ainda em fase de preparação.

O amor é uma palavra, que, ao que parece, todos conhecem. Passam o tempo todo a falar no amor para aqui, amor para ali, mas sabe-lo no meio de tantos escombros onde guardam o ferro velho de uma vida, isso é que não. Entender os humanos não é fácil. Há pessoas que sabem que sim, que o amor existe, falam dele, fazem amor com ele e por ele e passam uma vida inteira a procura-lo, para o trazerem para bem perto, mas ele anda por outras avenidas tristes onde se encontram palavras de amor em cada esquina e em cada muro esbatidas com tinta-da-china. Serão estas pessoas como se costuma dizer: o amor em pessoas? Depois há aquelas, que não estão nem aí para o amor. A sua vida é focada em outros interesses, e o amor está mesmo li tão perto e não o veem. 

A vida é feita destas e de outras coisas.

DM; ÔNIX in Eventos Maio/ 2013

terça-feira, 21 de maio de 2013

E os outros?


Queremos encher os olhos com o belo, com o que desejamos que nos faça feliz, quanto mais não seja por momentos ilusórios e que quase sempre são contraditórios. 
Queremos andar por todos os lugares com uma venda nos olhos, e que nos ofereçam flores acabadas de matar nos jardins.
Queremos só coisas boas, porque nefastas são tantas coisas que nos fazem levantar pela manhã, e então caminhamos sem destino, em busca de um lugar sagrado para sarar as nossas feridas.
Queremos todos ser felizes, fechando os olhos à verdade nua e crua que vive lado-a-lado connosco.
Queremos que tudo seja cor-de-rosa, nem que para isso se coloquem uns óculos especiais.
Queremos só ouvir falar de amor, e de luz a iluminar os nossos dias.
Queremos estas e outras coisas para nós…mas, 
E OS OUTROS?


DM, in Dakini/13

Estranha forma


Que estranha
Forma, é esta
Que a poesia
Encerra em si
Como se de si
Ela dissesse
Mas não quisesse
Ser mais no lugar
Onde os poetas
Se estranham
Mas s’entranham
Nas palavras todas

Que estranha
Forma, é esta
Que a poesia
Encerra em si
Tal como
Se lavra a terra
E se semeiam dores
Como se a terra
Fosse o último lugar
Onde plantar
Vontades
E criar raízes
Fora de si
E para si

Tela de Luiza Maciel