segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Como era cheia de luz, a terra e o vale---(Mileta Menezes e Dolores Marques)

.Escolhi o som do céu para vos agradar, o refrão é feito das raízes das glicínias onde aqui passou a história. Lembras-te? Como era cheia de luz a terra e o vale onde ao fim da tarde perseguíamos o som do alaúde, tu lembras-te?
...parecia chegar de um lugar incerto. Mas não. Esse som tecido nas vozes todas que não tinham chão e nem pão. Reza a história que era um vale silencioso mas profícuo, e a eira batizada sempre com as grossas pingas das novas chuvas. Lembras-te?
Nunca esquecerei, tão pouco, os fantásticos sons provenientes das trovoadas, dizias sempre que era o céu zangado com o mar, ainda recordo.Que culpa terá a eira! Que culpa teremos nós!? Num monótono gemido respondia-te o meu coração, só para não teres medo. Sim, são os vales da memória, que ainda se reencontram aqui! Vê, lá longe o céu a ganhar voz! Parece que vai voltar de novo a chover. Anda..que a nossa ausência é eterna e o Mestre, já está a fazer- nos sinal.
Ouvia os sinais que vinham de longe. Inexpressivos, mas soalheiros como os finais de tarde num outono já passado. No mar caiam tempestades e os meus olhos fechavam-se àquele lacrimejar longínquo. Afundava então o silêncio na nudez do vale e aguardava para chegar mais perto do céu. Ainda que demore, sei que não se fará tarde. Agora tudo se torna mais claro nesse azul profundo.
Longe, digo eu, ainda está esse destino que a lonjura da vida nos ausenta, mas as estrelas há no mar e também no firmamento, e sobre elas o mesmo sol intenso, que nos arrasta de encontro à vida. Por isso mesmo estão aqui, referia-se a tia Júlia, todas as nossas gerações. Devereis permanecer, como o cipreste que vos viu nascer e assumir o tempo que vos resta do disco de vinil. Páre, tia Júlia. Você sabe que somos sempre a verde do campo e do vale e que a nós não pode fluir o pão. Nem o barro se molda às nossas mãos e você sabe porquê. 
A fome que o corpo reclama, nem sempre se compadece com a verdade com que se assumem as estrelas no mar. A tia Domitília também dizia que a permanecermos aqui e assumirmos o nosso tempo, seria como cavar a terra e deixá-la a realizar o seu último evento, ao relento. As sementeiras irão chegar, o sol saberá como realizar a vontade da tia Júlia, até porque o tio Manuel do forcado, sempre soube levantar-se de madrugada, para dar as boas vindas ao sol. E até que tia júlia acordasse, ele já caminhava lá para os lados do vale, com as mãos abertas e os olhos fechados. Até que, se deu o milagre do sol…
… e desses raios de sol apenas resto eu, o vale e a eira, não, não me olhem dessa maneira, pois nem a dúvida vos acolhe, fez-vos noite súbita e densa nas vossas curtas vidas. Acaso a vossa presença poderá modificar o silencio da eira de onde a morte vos pendeu? Joana e Mónica, sei que o protesto da vossa aparência desabrocha nesta casa, enche-a de céu antigo, de tons jovenis, de tons que nunca esqueci!! Bem sei Tia Julia, mas a terra é a mesma, é nossa, a manhã estremece até que o alívio da luz nos procura, eternamente por todos os lugares. E tu Mónica, não te queixas do mesmo que eu? Tia, toda a eternidade é nossa, suspira e ergue-se por ti!!! 
...enquanto por aqui andar, serei eternamente grata a todos os que me quiserem sentir. Mas a Maria dos Prazeres terá ainda muitas vidas e onde se procurar até se encontrar. Sabia de todos os momentos doces daquele sol a deitar-se na eira. O trigo dourado esperava por algum raio de sol para se propagar e de novo encher os campos, a par das papoilas. E eu, simplesmente esperava....
…ouço-a cantar, és tu Mónica ou é a Joana? Quem a canta mais que a vida? É o campo ainda a sonhar no azul limpo da madrugada!! Ou talvés seja a lida das folhagens sobre a alma? Ondula incerta em mim ainda a razão daquela luz incandescente que vos fez cantar para além da vida! Se eu pudesse ser a consistência incandescente do céu quando o poente desce a fino ouro, aquele que nos envolvia, oh céu! Como ainda o sinto! - Dizes bem, Joana, o seu braço ao teu redor, ao nosso, os seus beijos,os seus abraços, que nos fazia esquecer a ceia da tia Julia. Ah, poder ser “tueu” de novo!! Nós.
…caminhava sempre ao seu redor. Já nada via para além de nós. Somente um grupo faminto de lobos que descia da montanha. Joana cantava hinos ao sol até que as estrelas descessem sempre na madrugada. Lembravam-me a manhã que chegava cedo, mesmo que não se ouvisse a minha voz. Esta minha loucura dispersa por todos os cantos deixava-me sempre desligada de tudo. A vida é um círculo imenso. A minha voz já não é o que era. São timbres desafinados, notas esquecidas. Madrugadas silenciosas. E eu cantava baixinho numa escala enfurecida, ,até que te visse chegar..
São memórias consagradas aos meus ouvidos, que a idade não as faça perder, porque a minha vista também já não é o que era, por isso a recordação é a minha consolação, são os meus olhos e já não precisam de socorro. Quereis o quê com esta minha idade de 85 anos? Amanhã preciso de ir à eira para dar continuidade à obra da terra. A saudade me espera e lá a amargura dilui-se derradeira . Pode ser que chova e a água plante ao nascer, uma raíz qualquer e eu me vença por lá e volte de novo a nascer!! 
..quero, desejo nascer de novo. Que seja através das palavras, as que se escrevem, e até as que ficam no baú de histórias ainda por contar....aguardo uma nova história.

Autoras:
 Mileta Menezes e Dolores Marques
Imagem::
Isabel Silva

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