quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O Homem era um Homem



- Aquilo que vi e ouvi no caminho que me levou hoje por becos escuros, deixa uma forte sensação de vazio, como se o meu corpo fizesse parte daquele acumulado de pedras negras, ainda a luzir debaixo dos reflexos das luzes dos candeeiros. Digo-te que fiquei completamente tolhida nos muros e nada me fazia arrancar dali. Os cães tremiam de frio os homens trocavam migalhas envoltas em farrapos e a manhã chegava, simplesmente chegava calada e fria. Eu fechei os olhos e deixei-me arrastar pelo vento que me furava a carne e me roía os ossos.
- Entendo que há muros frios e que a cidade é um sítio onde as pedras ganham formas, nessas ruas caiadas de negro. As sombras caem, os pilares aguentam todas as pontes sobre o rio, mas esses ambientes cimentados pelas mãos de quem tem fome, e de quem não tem medo do escuro, é de certa forma assustador. Prefiro ficar aguardando que te lembres do branco dos meus olhos. Ando por aqui nesta cor esbatida, mas não esqueço que não chegamos ainda ao ponto onde os nossos corpos se fundem e os nossos olhos assumem a verticalidade de um momento só nosso. Nunca me chegaste a dizer quantos olhos tens na noite. Talvez esta noite te tenha fornecido novos indicadores de como um olhar se transforma quando vê formas a denegrir ainda mais a noite.
- Nunca pensei quantos olhos são precisos para se cruzarem na noite. O que sei é que vi um homem. Uma figura bizarra a cortar o ar da noite, sempre que inspirava e expirava. Da sua boca saiam lufadas de ar, e do seu corpo uma nuvem de fumo miudinho que enchia o beco de sombras de várias cores. Houve até um momento em que me pareceu que a noite se tinha feito dia e que a cidade se tinha encolhido no corpo daquele homem. Mas o homem era um homem e não um figura daquelas que se vêem desenhadas nas paredes de betão ainda em estado de comiseração. Bem, depois vêm os grafitis, quando tudo estiver silencioso e quando o homem deixar de inspirar e expirar.
- Penso que as noites têm muito mais do que um homem a tentar sobreviver. Há mortes tão lentas que nenhum homem vê, nenhum rio colhe, nenhum caminho escolhe. Há escolhas assim por becos frios, onde os olhos se escondem. Da próxima vez, quero ir…Preciso dos teus olhos …(…)
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Escultura de Ricardo Kersting: A cadeira negra- Fibra de vidro - 1992 -
Salão Cidade de Novo Hamburgo - Obra premiada.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Se todos somos um...



Se todos somos um, não adianta fazermos contas, pois o inevitável acontece, sempre que entre um pensamento e outro desobstruimos o canal.

Será assim canalizado todo o nosso sistema energético para nos encontrarmos numa força maior.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Até quando?


(Imagem google)

Até quando as palavras se encolherão
Com pena
Da maior pena do poeta
Por não se sentir livre para escrever?
Amado poeta
A tornear -me em teu peito
Me refaço na pena
Da maior pena de ti, Poeta

Até quando esta minha insatisfação
Por não saber ser poeta
Na medida exacta do verbo
E deixar amortecer a luz nas ruas vazias
Onde moram todos os poetas?

Até quando esperarei por ti
Poeta das alturas
Para me dares um pouco
Desse mar que vi nos teus olhos
Humanidade casta
E bem aventurada
Mas que por ter linhas tortas
Para escrever
É só migalhas dispersas
A encher as bocas de um inferno
Prestes a acontecer?

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Almas quebradas

(Foto; viagem pela marginal)


Sabedores de um círculo aberto, até que seja reposta a ordem inversa, ao traçar-se a única trajectória onde os navegantes circulam sempre no sentido oposto, será assim o indicador dessa mesma ordem. Serão sempre todos os sentidos remetidos ao novo círculo que começa agora a tomar forma, a dizer-se onde e como deve chegar a todos os lugares. Na terra correm rumores de signos outros, correntes que extravasam as almas quebradas, a atingir a fonte de um espaço aberto, um remedeio deste meu cansaço. Quero que as forças dos teus braços me sigam rumo ao tempo, em que de joelhos no chão, me cegava quando atingia as alturas onde o teu corpo descansava e o meu se entregava às ceifas das searas amadurecidas pelo tempo. Quero que todos os sóis se espalhem por todos os espaços onde acordas as formas e adormeces todos os meus sorrisos. Quero um novo sorriso nas faces da lua, e que a noite seja o novo círculo a afagar os medos e remediar outros cansaços.

Saber que o meu corpo é um desejo e a minha alma uma corrente a gastar-se nas formas dúbias que carrega, é assumir que há correcções que só servem para manipular os sentimentos e disseminar as curvas e contra curvas de um corpo que quer, porque quer, assumir-se inteiro e verdadeiro na proporção dos desejos da alma. Porque os meus sonhos te desenterraram ? Porque as minhas mãos manipularam a fome, o desejo, a sede e todos os tempos que me contornaram, na procura de um só movimento, de uma só forma que sairá em tempo certo das tuas mãos?

Cairam todos os andores e todos os braços erguidos aos céus se desconjuntaram. Há santos espalhados pelo chão e nódoas negras nas minhas pernas, por me ter permitido ser um, em todos os fragmentos que ficaram. Lembrei-me de um sonho que beliscou a tua mão trémula, quando permitiste ser Homem na terra e Deus no Céu.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Formas

(Escultura de Ricardo Kersting, in Mulheres Aladas)



Já namorei durante tanto tempo esta peça, que hoje foi irresistível não a trazer para perto de mim...


...quem sabe, encontro-me nas suas formas, não fosse eu uma entre muitas as formas inexistentes, esperando talvez uma mão em concha

Passado e Futuro

(foto D.M. - Grafitis, Uma arte no escuro, com Joaquina e Rita Silva)
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Passamos tanto tempo, a olhar as pegadas que deixamos no chão, e não sabemos que vão ser varridas pelo próprio tempo


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à minha amiga Clarisse, com desejos de um ano muito feliz