segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Voo

Batiam desnorteadas as asas da borboleta nocturna.  A luz do candeeiro, inerte insistia na direcção do bater de asas arremessado contra o alcatrão. Tentei com as pontas dos dedos sentir-lhe algum movimento para que voltasse a voar, como há pouco. Nada se comovia perante o arrefecimento do voo.
Fechei os olhos à luz. Forcei aquele vidro fosco a quebrar-se. Mas, só um clarão preenchia o fundo negro dos meus olhos. Ampliava-se na sua trajectória - um círculo vicioso em rodopios coloridos até se desvanecer por completo. Tentei que tudo voltasse, para me concentrar no momento anteriormente liberto. Abri os olhos. Procurei de novo a borboleta. Tinha-se libertado finalmente das amarras da luz. Voou para sítio incerto.

Foi talvez em direcção ao seu reencontro. Um dos reencontros finais.  Tinha-se libertado do emaranhado de folhas, onde ainda sobrevivem algumas flores amarelas. Tinha-as beijado  repetidamente. Elas,  imóveis aceitavam o toque suave das suas asas.

Continuei ali naquela rua como se tudo fosse real. E tudo me parecia assim, uma verdade  perversa onde todos pensam que vivem livremente em qualquer lugar da noite. Enquanto a borboleta voava, nada me indicava um lugar onde também eu pudesse fazer parte daquele cenário onde o irreal se funde com o real. Era só eu e as alturas de um céu que se escondera até da própria noite.

Enquanto isso, observava os aviões tinham por ali traçado a sua meta. Sabia-o pelas luzes ténues que alternavam com aquele monstro  em que se transformara o azul  indigo. Como desenhar tal figura na noite, ainda que seja sob o céu azul? Tudo me parecia um momento ficcionado nas asas negras da borboleta nocturna. Até as flores amarelas do canteiro se entregaram ao chamamento  dos remoinhos criados pela brisa na folhagem verde.

Tudo desaparecera como se tivesse adormecido e sonhado com um cenário sobreposto à vontade de voar, para não mais voltar a ser corpo, mas alma nascida no centro de uma flor amarela. Foi então que voltei atrás no tempo e recordei um voo parecido com aquele primeiro em que a borboleta embateu no chão.  Vi claramente uma nuvem branca a envolver-me toda, vinda não sei de onde. O toque dessa montanha branca era suave mas imenso, tal pétala de uma flor que chama por nós.

Onde começa a realidade, quando tudo me parecia ficcionado naquele lugar por cima da ponte onde fui colhida pela viatura? Onde estava,  para me fazer ver, não a minha realidade, mas outra em qualquer ponto a existir naquele lugar?

Lembro dos paramédicos, enfermeiros, amigos e conhecidos que conhecem o local, dizerem não acreditar….sem um arranhão? Sem nada que me impedisse de fazer a minha  vida normal. Um deles disse-me que um atropelamento naquele lugar seria levado o corpo directamente para a morgue.

São directos, com uma realidade absurda? Não creio: Quero crer que são a realidade em acção. Eu, fui um momento ficcionado…talvez. Mas aqui estou, depois de uma terceira vez em que estive às portas da morte. Nem sempre se abrem. Só quando se está pronto para seguir viagem, ao entrar-se por ali dentro e iniciar-se o voo.

Tudo é real? Onde começa a realidade e termina a ficção, ou onde estamos todos neste cenário contraditório em vários sentidos obrigatórios.Só existe um sentido obrigatório. O AMOR, esse sentimento que nos parece tão distante umas vezes, e outras tão perto como se fosse só um veio carregado de dor. Ou porque amamos, ou porque não sabemos como amar e responder a esse chamamento.

Mas, isso é real? Ou fará  parte de uma ficção onde não nos sabemos, por não termos asas para voar?

Foi só uma paragem numa rua, a minha rua, onde voo muitas vezes para lugares fundos…
Sei lá porque se inventam histórias e personagens ainda que reais. Tudo em mim é a realidade vivida, sentida e desenvolvida num cenário emocional, onde possa criar nova vida através do real, mesmo que muito conteúdo seja ficcionado. Tudo tem que ser real.

ÔNIX

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Nem tudo é em género…(género)

Já o Todo se encontrava na masturbação ocular de um olhar, com maior incidência nos espaços fechados. Sequer os traços marcados nas minhas mãos admitiam um novo tracejado, capaz de acelerar o tempo já consumido por outro destino. Momentaneamente, caladas as vozes seguiam rio afora, sem demoras, nem correntes admoestadas pelos ventos que chegavam de cima, onde tudo se completara, quando a tempestade decidira esburacar os caminhos. 

Sequer as minhas mãos sabiam onde se demorar. Tinham desaparecido todos os colos fechados. Nada havia para lá desse olhar, onde as forças obscuras eram simplesmente a negação plena de uma vida em construção.

Já os corpos amantizados, se debatiam nesse concubinato, em leitos castrados pelo tempo em falta. Uma vida incompleta de cansaços e esperas desmedidas. Tudo agora, era em demasia coisa pouca, quimeras, soma de nadas, sonhos desflorados por conta de uma verdade acorrentada em mares outrora navegados.
Os pecados são ainda castigados pelas mãos, onde traçado o destino, ali deixara a sua marca, cuja união nunca foi exaltada por um além continuado. Só as marcas da indiferença, onde tudo se consome, até mesmo o sol, cujo foco principal se insinua colado nos nossos olhos, porém, sem a lua por perto.

A noite demora-se em espaços abertos, onde todos dormem esquecidos dos sonhos inacabados. Que estigma este, onde se contradizem em versos molhados, escritos com a pena, onde as lágrimas rebolam cantadas por um rio que corre só num único sentido. Na limpidez das suas águas, espelham a dor de um amor que se move ainda só por dentro dos corpos estilizados, em químicas perversas de uma pele contraditória à incidência da luz.

Calam-se as vozes, sussurram em dialetos desusados, comunicam-se por códigos encriptados entre calafrios desordenados. No entanto, apesar dos arrufos do tempo, amam o todo ali habituado às amarras de cor preta. Descuidados, os ventos que passam, levam para longe todas as correntes brancas, e esquecem os pontos e os nós acorrentados de cor negra nos seus corpos agora amortalhados.

Ao género feminino pertencem as lágrimas a acasalarem com os olhos, como se em todos os buracos existissem fêmeas com vaginas abertas. Ao género masculino pertencem os olhos, como se todas as correntes não soubessem da foz e ali afundassem o sémen, reincidente. Por ali se demoram os efeitos secundários de uma soma de variáveis incertas, nas costuras de um tempo inadvertido nos olhares todos, onde o sentimento nem sempre cria raízes fundas.

Um misto de incertezas no maior ponto onde todos os géneros amaldiçoados pela fome se limitam a deixar que por eles passem todas as horas. Por isso o tempo decide copular com o vento. Este gigante contratempo assexuado a ejacular nos momentos sufocados de um amor autenticado na foz de todos os rios, com correntes ainda caladas, e não exaltadas pelo Todo…

O Todo desalmado num processo químico soletrado em poemas ao abandono.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Lusco-fusco de um fim de tarde branco

Tive um sonho que me falou, sem precisar desabafar sobre um amor sentido no início da noite. Tudo era acalmia. Tudo se resumira à única saudade de um corpo estranho acabado de nascer.
Sentia esse movimento a despertar desejos ainda em estado latente na minha pele, por não conseguir extrair dali o essencial. Algo, que somente me permitisse segui-lo na sua viagem. Que me permitisse sentir um pedaço da sua história. Esperava que tudo se concluísse e até me conduzisse ao centro. Esse núcleo onde todos os mistérios se tocam, orientando-me os sentidos num embalo simples e belo.

Amo esse fim de tarde a cair no lusco-fusco.

É como se todo o cenário se entregasse às novas correntes passageiras. Centralizadas no espaço ocupado pela nudez dos corpos, entregam-se ao intercâmbio alegórico da ilusão.
Concluo no entanto, que por ter havido um momento distinto nesse fim de tarde, os meus olhos calaram verdades sentidas e não ditas. Nem mesmo quando os corpos se tocavam, no momento exacto da verdade ocular. Tudo se desvanecia quando as pálpebras trancavam medos num fundo invencível. Possuídos por um desejo que os difundisse por todos os quadrantes daquele universo ainda por explorar, onde se constitui o Todo Universal.

Porém, o lugar era ainda habitado por um conjunto desarmonioso das batidas incertas do sentimento.
Calei memórias. Abafei o ar ressequido com as minhas mãos fechadas! Risquei numa tela ainda virgem, vertigens de outros tempos, em que sonhava a preto e branco. Tudo era o inverso do tempo em mim. Tracei nesse contratempo, um momento só meu. Fui andando pelas ruas, onde a noite se estendera no meu corpo. Sentido, sofria, não por medo do escuro, mas por receio de se perder nesse já conhecido degredo.
Naturalmente a carne tremia. Os ossos todos em sintonia, como se a fome habitasse um beco onde tudo ali se consome. O pensamento era agora o limite do corpo. Ora fingia dormir, ora ensaiava todos os momentos abertos ainda do corpo, que não era achado nem tido pelo seu nome. Aberto em todos os poros da sua pele, enfrentou o enredo, a contracenar nos calabouços. É onde sempre se cola nos muros, a sequência habitual dos seus segredos ocultos.

A nudez presente admitiu-se no único lugar onde o fim da noite deixa de ser segredo, por quantos pontos se tocarem no momento da verdade. O sonho partiu e levou com ele todos os momentos ainda vivos, e não traídos. Nada se trai, quando afloram Invernos longos e nos deixamos levar por aquele movimento inexpressivo dos ventos e das chuvas a caírem desregradas pelos campos. O desfilar de todos os cabelos, contrai-se quando nem um pingo da chuva é relevante no fechar das pálpebras. Os medos calaram as sombras ainda antes do regresso da Primavera.

Os olhos abertos de novo para a luz, abrem as cortinas dos enganos. Espiam todos os caminhos, para o encontro predestinado. A madrugada é fria. Os corpos adormecidos, ainda enlaçados, não sabem quando, nem onde se irão tocar de novo.
O sonho partira na demanda de um ponto que ainda é luz naquele lusco-fusco de um fim de tarde, branco.

ÔNIX

segunda-feira, 21 de março de 2016

Ponto de luz

Crer no poder de amar um ponto de luz
como condição essencial e breve
tal a forma de desenhar em cruz
um corpo solto, límpido e leve

Querer a imensidão desse Universo
sem saber como chegar ao lugar
onde já nada é o inverso
nem mesmo a lua numa noite sem luar

Crer na rosa-dos-ventos, agora tão perto
do maior centro desenhado no peito
a dançar nua no infinito longo do deserto

Querer isso tudo e permitir-me ainda assim
geometricamente em círculos e semi-circulos
até ao ponto de o poder sentir em mim

ÔNIX

Centro

Assimilar tudo no movimento dos olhos, quando simplesmente se permitirem desobstruir canais de passagem. Construir caminhos, seguir viagem rumo ao maior centro onde sempre nos esperam, sem roupagens, nem miragens nos sentidos que enchem o vazio dos olhos.

ÔNIX
Imagem: net (Atena)

Luz

Não suporto este fundo a criar enredos, num cenário perpétuo da noite. Quando cai assim nua sobre mim, sei-a leve e solta como eu. Conheço todos os silêncios ali inscritos. Pinto-os em tela, traçando no centro, um círculo, para Te fundir nessa verdade centralizada em todos os desejos promíscuos que crescem com a permissão de Deus, no meu corpo. 
Quando a madrugada se aproxima, já nada me faz permanecer nessa meia verdade, porque o sol chega de mansinho e coloca nos meus olhos, a luz que Tu És. 
O dia abre-se, toma-me por inteiro, a mim e ao desejo ainda a copular com o sonho de te ter sempre por perto.

ÔNIX

Um Poema

Imagina simplesmente um poema
Um poema intemporal
Um poema castigado pelas investidas do tempo
Um poema cantado no tumulto dos mares
Um poema sentido nas correntes de um rio
Um poema a saber-me a menta e a mel, e a fruta, e a canela
Um poema, cujos versos me devolvam o agridoce das amoras silvestres

Escreve o poema
O poema que me faça esquecer do tempo, imperfeito mas pleno de rituais
O poema que descreva a intemporalidade dos sonhos:sóbrio, eloquente, envolvente…com versos de aromas
O poema que se afunde no teu maior fundo

Imprime-me agora o poema
Como se eu fosse a tela dos desenganos, dos amores ali consentidos, sem sentidos, e não desmentidos pelos traços vincados de um pincel
Declama agora o poema
Que me faça sorrir e também chorar
Que as palavras ali nascidas sejam as estrelas da noite
E os versos soletrados, farrapos de luar nos meus olhos
Sente somente
A verdade ou a inverdade desse momento inscrito no meu corpo
A realidade, a ficção, a emoção à flor da pele, quando de olhos fechados te sentires somente o verdadeiro poema

E eu a brisa a dançar nas tuas mãos enquanto pensavas e nada escrevias
Não bebias da fonte onde nasce a poesia
E verso, somente, assim exposto à clara nudez do Poema…fiquei
Fui raiz, de um pensamento, ou simplesmente a desordem de um momento proscrito na face contrária de uma página ainda em branco

ÔNIX

Sonhos meus e teus

Ali, onde só os falcões dominam
A parte mais densa do céu
Onde nem o voo incauto das águias
Ousa saber o caminho do céu

Ali onde só as vozes roucas dos corvos
Anunciam o lusco-fusco nos meus olhos

Ali, onde o meu corpo se aquietou
No desmaiar da imensa conjuntura celestial
Quando no primórdio da noite
O início de Deus ali se anunciou
Naquele lugar primeiro e último
Onde só o tempo ceifa o Pão d’Oiro

(D’Oiro é o tempo a nascer nas eiras)

Ali, onde os meus olhos descansam
Ainda num fundo, tão fundo da noite
À luz de um pano de fundo azul
Onde ensaiam ainda a última coreografia
As pétalas lilases

Ali no tempo dos invernos longos pelos campos
Nasce a derradeira verdade de um sonho
Que a primavera amainou
Quando o verão dele se cansou

Ali, é e sempre será o meu céu
Onde os corvos já não têm voz
E os falcões se perdem na imensa catedral
Do voo da maior águia que ali nasceu
Onde guardados estão os sonhos meus e teus

ÔNIX

segunda-feira, 14 de março de 2016

Memórias

Pudera ter as memórias todas juntas
e saber-te ali um poema
que te pudesse ler nas entrelinhas do tempo
quando caísse sobre mim, somente um verso
que te permitisses num único ponto
onde se desnuda a poesia

Quisera beber na fonte de todas as vontades
onde o Verbo é nascente e verdade em nós
quando naturalmente somos um no outro

ÔNIX

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Geometria dos corpos


Exigimos mais tempo para comemorar todos os abraços, mais espaço para se alongarem os caminhos, mais tempo para as despedidas, enquanto os olhos se escondem debaixo de uma capa, de onde nem sempre se escapa. Nem mesmo os que se dão ao trabalho de se despedirem sem nada exigirem. 

E ela ali está sempre poderosa e amorosa, tal como a desejamos e que dá pelo nome de felicidade. Fazemos desse sentimento prazeroso o nosso aconchego. Tanto o é, que quando nos sentimos felizes vemos o mundo ao contrário, ou seja, vemo-lo do modo que ele é e/ou deveria ser, se não o transformássemos num poço de lágrimas. Lançamo-nos em rebeldias forasteiras com passos em falso para o verdadeiro caminho. E então caímos na desgraça, na desordem, em movimentos simultâneos aos nossos corpos, sempre e remar contra marés desorientadas. Mas o tempo, no seu movimento constante, segue, e não nos pode guiar neste nosso trajecto pessoal. Esta aventura existencial.

Não se entende porque a cada vez que nos é aberta a porta para nos integrarmos nesse mundo circunstancial, mas divinamente construído, não sabemos se a porta se abriu por vontade própria, ou se a forçamos, como quem se esforça para chorar, e sem o conseguir força o desembocar de uma lágrima perdida no tempo, o tempo onde reina ainda a infelicidade.
A felicidade é o caminho, dizem e “o essencial é invisível aos olhos”, como se todos fossemos o todo num principado sem ordenamentos, mas com verdades de um mundo novo onde o essencial é o único a enfrentar o tempo.

Mas, gastamos tanto do nosso tempo a avaliar as causas dos nossos corpos inertes, sem saber dos efeitos secundários do próprio medo de ser feliz. Castrador esse ponto onde nos encontramos, para depois nos perdermos em vários segmentos de uma recta, que nada mais é do que uma linha que seguramos nas pontas dos dedos. Construa-se uma pirâmide, e retire-se dali, duas das suas arestas para dois pêndulos. A energia agora edificada, é contrária à energia que nos move a todos, aquela que ainda se sente em círculos debilitados como moeda de troca. Configuramo-nos por força das circunstâncias para essa mesma energia. Entramos numa espécie de amnésia que nos faz contrariar todos os movimentos ainda vivos. Este é o mundo da desorientada frota num imenso oceano por desbravar. A força magnética dos corpos, perpendicular à força energética que pesa agora mais para um lado. Em movimentos frenéticos nos deixamos levar. Entramos num profundo estado de meditação em dois movimentos a rodar em sentidos opostos.

Mas ela ali está sempre colada a nós. Basta para isso, imaginarmos o nosso corpo como um balançar frequente entre ruídos de um choro intenso. Configuremos então os braços para os dois pratos. Coloquem-se as palmas das mãos viradas para o céu. Imaginemos esse céu como sendo um círculo dividido em dois. Coloquemos ali os olhos.

O que se solta desse conjunto geométrico de círculos, semicírculos, linhas rectas e perpendiculares à pirâmide edificada no nosso corpo, será talvez o que pesa para a decisão final da vida. A imensidão de um sistema egocêntrico e descuidado dos valores que assumidamente se alteram, em virtude dos nossos gestos e por conseguinte das nossas necessidades. Ao seguirmos caminhos contrários, a antevisão do mundo real é uma incógnita, porquanto vivermos uma realidade que se destina a contrariar o que é, passo a passo. Realidade vs irrealidade, dividida entre as nossas mãos, agora estendidas numa versão assimétrica ao corpo da balança.

Se olharmos bem para elas e se contabilizarmos os que os nossos olhos ali depositaram, constataremos a sua verdadeira oposição. Os opostos medidos por gestos que se fundem nos olhos fechados. Neste caso tudo o que ali depositamos naquela mão agora descaída, foi o essencial mundo dos opostos, onde a felicidade espera para ganhar corpo. Nunca ela se constituirá desta forma, inadvertidamente disposta a ser somente um caminho, enquanto mantivermos esta forma desnudada mas inerte na imensa conjetura de uma pirâmide. Contabilizando tudo, veremos que rejeitamos o essencial, o que nos pode trazer a felicidade e juntamos o que nos traz infelicidade. Depois restam ainda as lágrimas que empurram a pálpebras e se soltam como rios sedentos de histórias ainda vivas e por viver, nessa correnteza enganadora que nunca vai dar à foz. Perdem-se por labirintos sem entradas e sem saídas, navega sem mastros por mares nunca navegados.

E, nesta viagem, somos somente um rio que se perde pelas fronteiras de um mundo em plena euforia que ainda corre nos nossos olhos. O corpo fundiu-se na corrente. Deixá-lo seguir o seu rumo e esperar até que o céu se abra de novo, e nos permita novas geometrias dos corpos.

Dolores Marques (ÔNIX)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Óbvio até ao tutano




Sabem, esta época que se diz ser a época natalícia, larga em mim uma espécie de vertigem diferente da habitual. Este vício em dissecar com as palavras alguns géneros estranhos de vertigens em mim, é já um hábito. Contornar o óbvio, nunca foi uma coisa que me desse prazer, por isso mesmo, por ser tão óbvio, não aceita qualquer tipo de vertigem, porque o óbvio por si só, nem vertigem chega a ser uma palavra que se possa determinar pelo seu género, fêmea ou macho. Faz-me pensar no ar dissimulado daqueles seres angelicais, mas que viram verdadeiros animais, alguns até demónios em três tempos diferentes: o passado, o presente e o futuro, mas sempre com vertigens secundárias a fervilharem nas partes baixas, porque a serem anjos de verdade, não poderiam gozar dessa amplitude dos corpos.

Escrever para mim, já é uma vertigem de há muito, mas daquelas onde o óbvio não tem lugar. Escrever já se tornou num vício estranho que me leva por lugares onde a imaginação chega a doer, quando se encontra com esse óbvio tão eloquente em terras de ninguém, o lugar onde cria raízes estranhas nos corpos celestes, que do alto chegam sempre com as cores do pai natal a rasgar os céus. 

“Efectivamente, mas sem moralizar”, seria uma forma de dissecar esse óbvio impregnado na pele de muitas libertinagens acusadas de ousar enfrentar o óbvio, e depois são só, e só isso mesmo…obviamente o óbvio. Escrever para mim, chega a ser a catarse dos movimentos oculares, dos sentidos todos, os funcionais e até os que diferem de organismos disfuncionais. Como eu adoro estas disfunções a escorregar pelos meus dedos, quando já se masturbaram no meu corpo todo. O gozo é a duplicar, a triplicar e às vezes só mesmo uma tábua de logaritmos para dissecar todas estas mais valias impregnadas no mais fundo que há em mim.

Dissecar o óbvio, é quase como apalpar o ar, e não encontrar ali, no mínimo, uma partícula desse mesmo organismo, ainda vivo em tantos corpos estranhos e não estranhos. Abandonar esses movimentos pode ser perigoso, por causa das movimentações do ar, onde ele se entranhou. Por isso, o melhor a fazer é entender o porquê de tanta objectividade num organismo que só vive à custa de doenças esquizofrénicas de um foro quiçá não psicológico, mas lógico nesse antro abominável do ser. É que pelo que pesquisei, nem a ciência consegue determinar onde tem origem, tamanho vicio a escorrer pelas vertigens de um sem número de viajantes dos corpos nus.

Em jeito de se lembrarem também de uma condição feminina, onde nasceram para dar luz ao mundo e se calarem as sombras onde as colocaram durante toda a sua existência, anda agora esse género fêmea revestida do óbvio. Perdida, inanimada, sem saber quem é, de onde veio ou para onde vai. Múmia, estátua, ou simplesmente corpo ensandecido numa batalha sem tréguas. E ele…ele o sexo forte, o óbvio propriamente dito, vê agora o seu corpo, despojado da forma com os ossos mordidos à flor da pele, e carne com carne, vai-se deixando consumir, bem devagar, como qualquer cabaz de Natal. Sim, porque o género feminino ganha sempre, pela sua aguçada intuição, e às vezes maldição por fazer disso um jogo multifacetado.

Transformado agora em Pai Natal de chocolate, vai ficando sem força para se reconstituir de novo até à próxima investida do género fêmea. E esta, que tem intrínseco o seu jeito inato de tudo saber e tudo conseguir, prepara-se para deitar por terra, toda aquela força bruta que sempre a subestimou e a enjeitou na arena dos amaldiçoados. Nada a fazer. Até agora, o óbvio tem desempenhado o papel principal nesta peça.

Insistindo no jeito de se vender a alma ou o que resta dela, assim se vai construindo, momento a momento, o intelecto, porém masturbado num ponto abaixo do mediatismo que conduz à escolha do género.
Dá-se então início a uma forma bem natural de manipulação. Aí vale tudo e nada há a perder. Os opostos a tocarem-se, a medirem forças para se saber qual o mais hábil, o mais belo, o mais esbelto, o mais carismático poder de todos os tempos, vindo de um lugar que nem eles conhecem. Só sabem que lhes está impregnado na pele. Tatuado... assim este se deixa molestar, e óbvio agora até ao tutano.

Sugam-se uns e outros num gotejar inanimado, e os corpos dispostos a tudo nesse que é um cenário contraditório à própria luz que imanam de si e por si. 
Caem agora as últimas gotas de suor que ainda lhes restavam nos corpos.

Dolores Marques