quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Geometria dos corpos


Exigimos mais tempo para comemorar todos os abraços, mais espaço para se alongarem os caminhos, mais tempo para as despedidas, enquanto os olhos se escondem debaixo de uma capa, de onde nem sempre se escapa. Nem mesmo os que se dão ao trabalho de se despedirem sem nada exigirem. 

E ela ali está sempre poderosa e amorosa, tal como a desejamos e que dá pelo nome de felicidade. Fazemos desse sentimento prazeroso o nosso aconchego. Tanto o é, que quando nos sentimos felizes vemos o mundo ao contrário, ou seja, vemo-lo do modo que ele é e/ou deveria ser, se não o transformássemos num poço de lágrimas. Lançamo-nos em rebeldias forasteiras com passos em falso para o verdadeiro caminho. E então caímos na desgraça, na desordem, em movimentos simultâneos aos nossos corpos, sempre e remar contra marés desorientadas. Mas o tempo, no seu movimento constante, segue, e não nos pode guiar neste nosso trajecto pessoal. Esta aventura existencial.

Não se entende porque a cada vez que nos é aberta a porta para nos integrarmos nesse mundo circunstancial, mas divinamente construído, não sabemos se a porta se abriu por vontade própria, ou se a forçamos, como quem se esforça para chorar, e sem o conseguir força o desembocar de uma lágrima perdida no tempo, o tempo onde reina ainda a infelicidade.
A felicidade é o caminho, dizem e “o essencial é invisível aos olhos”, como se todos fossemos o todo num principado sem ordenamentos, mas com verdades de um mundo novo onde o essencial é o único a enfrentar o tempo.

Mas, gastamos tanto do nosso tempo a avaliar as causas dos nossos corpos inertes, sem saber dos efeitos secundários do próprio medo de ser feliz. Castrador esse ponto onde nos encontramos, para depois nos perdermos em vários segmentos de uma recta, que nada mais é do que uma linha que seguramos nas pontas dos dedos. Construa-se uma pirâmide, e retire-se dali, duas das suas arestas para dois pêndulos. A energia agora edificada, é contrária à energia que nos move a todos, aquela que ainda se sente em círculos debilitados como moeda de troca. Configuramo-nos por força das circunstâncias para essa mesma energia. Entramos numa espécie de amnésia que nos faz contrariar todos os movimentos ainda vivos. Este é o mundo da desorientada frota num imenso oceano por desbravar. A força magnética dos corpos, perpendicular à força energética que pesa agora mais para um lado. Em movimentos frenéticos nos deixamos levar. Entramos num profundo estado de meditação em dois movimentos a rodar em sentidos opostos.

Mas ela ali está sempre colada a nós. Basta para isso, imaginarmos o nosso corpo como um balançar frequente entre ruídos de um choro intenso. Configuremos então os braços para os dois pratos. Coloquem-se as palmas das mãos viradas para o céu. Imaginemos esse céu como sendo um círculo dividido em dois. Coloquemos ali os olhos.

O que se solta desse conjunto geométrico de círculos, semicírculos, linhas rectas e perpendiculares à pirâmide edificada no nosso corpo, será talvez o que pesa para a decisão final da vida. A imensidão de um sistema egocêntrico e descuidado dos valores que assumidamente se alteram, em virtude dos nossos gestos e por conseguinte das nossas necessidades. Ao seguirmos caminhos contrários, a antevisão do mundo real é uma incógnita, porquanto vivermos uma realidade que se destina a contrariar o que é, passo a passo. Realidade vs irrealidade, dividida entre as nossas mãos, agora estendidas numa versão assimétrica ao corpo da balança.

Se olharmos bem para elas e se contabilizarmos os que os nossos olhos ali depositaram, constataremos a sua verdadeira oposição. Os opostos medidos por gestos que se fundem nos olhos fechados. Neste caso tudo o que ali depositamos naquela mão agora descaída, foi o essencial mundo dos opostos, onde a felicidade espera para ganhar corpo. Nunca ela se constituirá desta forma, inadvertidamente disposta a ser somente um caminho, enquanto mantivermos esta forma desnudada mas inerte na imensa conjetura de uma pirâmide. Contabilizando tudo, veremos que rejeitamos o essencial, o que nos pode trazer a felicidade e juntamos o que nos traz infelicidade. Depois restam ainda as lágrimas que empurram a pálpebras e se soltam como rios sedentos de histórias ainda vivas e por viver, nessa correnteza enganadora que nunca vai dar à foz. Perdem-se por labirintos sem entradas e sem saídas, navega sem mastros por mares nunca navegados.

E, nesta viagem, somos somente um rio que se perde pelas fronteiras de um mundo em plena euforia que ainda corre nos nossos olhos. O corpo fundiu-se na corrente. Deixá-lo seguir o seu rumo e esperar até que o céu se abra de novo, e nos permita novas geometrias dos corpos.

Dolores Marques (ÔNIX)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Óbvio até ao tutano




Sabem, esta época que se diz ser a época natalícia, larga em mim uma espécie de vertigem diferente da habitual. Este vício em dissecar com as palavras alguns géneros estranhos de vertigens em mim, é já um hábito. Contornar o óbvio, nunca foi uma coisa que me desse prazer, por isso mesmo, por ser tão óbvio, não aceita qualquer tipo de vertigem, porque o óbvio por si só, nem vertigem chega a ser uma palavra que se possa determinar pelo seu género, fêmea ou macho. Faz-me pensar no ar dissimulado daqueles seres angelicais, mas que viram verdadeiros animais, alguns até demónios em três tempos diferentes: o passado, o presente e o futuro, mas sempre com vertigens secundárias a fervilharem nas partes baixas, porque a serem anjos de verdade, não poderiam gozar dessa amplitude dos corpos.

Escrever para mim, já é uma vertigem de há muito, mas daquelas onde o óbvio não tem lugar. Escrever já se tornou num vício estranho que me leva por lugares onde a imaginação chega a doer, quando se encontra com esse óbvio tão eloquente em terras de ninguém, o lugar onde cria raízes estranhas nos corpos celestes, que do alto chegam sempre com as cores do pai natal a rasgar os céus. 

“Efectivamente, mas sem moralizar”, seria uma forma de dissecar esse óbvio impregnado na pele de muitas libertinagens acusadas de ousar enfrentar o óbvio, e depois são só, e só isso mesmo…obviamente o óbvio. Escrever para mim, chega a ser a catarse dos movimentos oculares, dos sentidos todos, os funcionais e até os que diferem de organismos disfuncionais. Como eu adoro estas disfunções a escorregar pelos meus dedos, quando já se masturbaram no meu corpo todo. O gozo é a duplicar, a triplicar e às vezes só mesmo uma tábua de logaritmos para dissecar todas estas mais valias impregnadas no mais fundo que há em mim.

Dissecar o óbvio, é quase como apalpar o ar, e não encontrar ali, no mínimo, uma partícula desse mesmo organismo, ainda vivo em tantos corpos estranhos e não estranhos. Abandonar esses movimentos pode ser perigoso, por causa das movimentações do ar, onde ele se entranhou. Por isso, o melhor a fazer é entender o porquê de tanta objectividade num organismo que só vive à custa de doenças esquizofrénicas de um foro quiçá não psicológico, mas lógico nesse antro abominável do ser. É que pelo que pesquisei, nem a ciência consegue determinar onde tem origem, tamanho vicio a escorrer pelas vertigens de um sem número de viajantes dos corpos nus.

Em jeito de se lembrarem também de uma condição feminina, onde nasceram para dar luz ao mundo e se calarem as sombras onde as colocaram durante toda a sua existência, anda agora esse género fêmea revestida do óbvio. Perdida, inanimada, sem saber quem é, de onde veio ou para onde vai. Múmia, estátua, ou simplesmente corpo ensandecido numa batalha sem tréguas. E ele…ele o sexo forte, o óbvio propriamente dito, vê agora o seu corpo, despojado da forma com os ossos mordidos à flor da pele, e carne com carne, vai-se deixando consumir, bem devagar, como qualquer cabaz de Natal. Sim, porque o género feminino ganha sempre, pela sua aguçada intuição, e às vezes maldição por fazer disso um jogo multifacetado.

Transformado agora em Pai Natal de chocolate, vai ficando sem força para se reconstituir de novo até à próxima investida do género fêmea. E esta, que tem intrínseco o seu jeito inato de tudo saber e tudo conseguir, prepara-se para deitar por terra, toda aquela força bruta que sempre a subestimou e a enjeitou na arena dos amaldiçoados. Nada a fazer. Até agora, o óbvio tem desempenhado o papel principal nesta peça.

Insistindo no jeito de se vender a alma ou o que resta dela, assim se vai construindo, momento a momento, o intelecto, porém masturbado num ponto abaixo do mediatismo que conduz à escolha do género.
Dá-se então início a uma forma bem natural de manipulação. Aí vale tudo e nada há a perder. Os opostos a tocarem-se, a medirem forças para se saber qual o mais hábil, o mais belo, o mais esbelto, o mais carismático poder de todos os tempos, vindo de um lugar que nem eles conhecem. Só sabem que lhes está impregnado na pele. Tatuado... assim este se deixa molestar, e óbvio agora até ao tutano.

Sugam-se uns e outros num gotejar inanimado, e os corpos dispostos a tudo nesse que é um cenário contraditório à própria luz que imanam de si e por si. 
Caem agora as últimas gotas de suor que ainda lhes restavam nos corpos.

Dolores Marques