quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Filipe Campos Melo disse sobre "já me vi em dias de sol"



Filipe Campos Melo disse, sobre o poema “Já me vi em dias de sol”

O que é a poesia?
Como se escreve?
É o verso inato ou apreendido?

A resposta às questões que coloco não são simples ou singulares.
A interpretação de um poema é talvez um caminho para a sua formulação (sempre subjectiva).

Acredito que a boa poesia deve ser sempre apreensível, mas tal não significa necessariamente que deva sempre reduzir-se a uma imediata simplicidade (até por correr o risco de a destituir do que creio ser uma das suas essências – “dizer o óbvio de forma não óbvia”).

É que, acredito mais ainda, um dos maiores prazeres de um leitor (falo dos leitores que merecem o poema) é demorar-se nos versos, deter-se nos seus significantes, interpretar o seu significado (muitas vezes reconstruindo-o). 

O encontro da tua poesia (já lá vão uns anos...) e a irrecusável vontade de a interpretar (pela sensibilidade, pela sabedoria, pela qualidade imersa ao verso) contribuiu significativamente para a minha teorização poética do verso (sempre inacabada, sempre incompleta).

Este poema (que bem me soube reencontrar a tua plenitude e maioridade poética) devolveu-me às questões primordiais.

O poema tem um forte simbolismo, escrito em excelência, sublimado por um tom (dolorosamente melancólico) que arrebata.

Apercebo-me de três marcados momentos.

O Primeiro Momento
Constituído pelas quatro primeiras “quadras”, com quatro subtempos,

Sendo o primeiro, o lugar/cenário
“já me vi em dias de sol/ sem sol/ que pela peneira/ se repartia/ à tarde no quintal”

O segundo, a voz
“havia lamúrias/em surdos/que pareciam vento/nas levadas”

O terceiro, a sua ausência (o sonoro silêncio)
“havia silêncios/no entardecer/que brincavam/às escondidas/nos arvoredos”

O quarto, a percepção do tempo (que decorrido ainda não ocorreu)
“havia caminhos longos/a fazerem-se breves/nos meus passos/ainda frescos”

O primeiro momento, em seus subtempos, é um enquadramento sublime do todo.
Sobressai o traço da inocência, contudo já traçado por uma iniciática melancolia (que se impõe como percepção irrecusável).

O Segundo Momento
Constituído pelas quinta a oitava “quadra”, igualmente com quatro subtempos,

Sendo o primeiro novamente, como recomeço, o lugar/cenário (ainda o inicial mas já desigual) 
“já me vi em dias de sol/ sem sol/ que pela manhã/ enchia as colinas”

O segundo, o mundo (já estranho)
“havia gigantes/adormecidos/no caminho/das giestas”

O terceiro, de novo a voz (igual e diversa)
“havia trôpegos/corpos/a escutar/o canto dos pássaros”

O quatro, como súmula, a percepção (passo da sabedoria)
“havia gente/que não se sabia/ser gente”

O segundo momento, em seus subtempos, é um passo profundo.
Sobressai o traço da estranheza, marcado já por uma intensa melancolia (que se impõe como percepção da percepção).

O Terceiro Momento
Constituído pelas nona a décima quinta “quadra”, com dois subtempos, que se fundem, harmoniosamente, tornando-se intrinsecamente dependentes.

O Primeiro subtempo 

“já me vi em dias de sol/sem sol/a sacudir/o sino da capela”

Onde saliento o “sino” como símbolo maior deste momento terceiro.
O sino que toca e, em seu badalar, anuncia, como voz sem voz, o perder da vez.

“havia chuvas/pelos campos/a encher/as últimas pegadas

Onde o lado enegrecido, que perpassa o poema, se assume de forma quase explícita, 
Logo seguido do seu contraponto, indicando que todo o tempo é ciclo em constante reinício.

“havia raízes tenras/a nascer/nas enseadas”

O Segundo subtempo 

“já me vi em dias de sol/sem sol/a engolir/os últimos sacramentos”
havia as indomáveis/árvores/ainda de pé
havia a brisa/nas suas folhas/ressequidas
havia chocalhos/escondidos/nos matagais”

Onde sobressai o jogo de contrastes e oposições e a forma, sublimemente subliminar, como os mesmos ora se expressam, ora se ocultam.

O Quarto Momento
Constituído pelos últimos 8 versos”,  

“já me vi em dias de sol/Sem sol/a haver/será só um único/ponto/onde o olhar/se perde/no horizonte”


Onde encontramos o verso mote do poema (“já me vi em dias de sol/Sem sol”), que é repetido no início de cada momento, como reinício do mesmo (opção muito conseguida que introduz no poema o seu lado mais fonético impondo uma cadência que reclama boa declamação),

Mas aqui com uma nuance (muito relevante) em relação aos momentos anteriores (que serve também de ponto de encerramento)

É que, afinal, talvez haja Sol, mesmo que tal possibilidade seja remota (no espaço/tempo)
“a haver/será só um único/ponto/onde o olhar/se perde/no horizonte”


Na sublime excelência que sempre me encantou na tua poesia
Assim é este teu poema.



quarta-feira, 25 de julho de 2012

Já me vi em dias de sol


já me vi em dias de sol
sem sol
que pela peneira
se repartia
à tarde no quintal

havia lamúrias
em surdos
que pareciam vento
nas levadas

havia silêncios
no entardecer
que brincavam
às escondidas
nos arvoredos

havia caminhos longos
a fazerem-se breves
nos meus passos
ainda frescos

já me vi em dias de sol
sem sol
que pela manhã
enchia as colinas

havia gigantes
adormecidos
no caminho
das giestas

havia trôpegos
corpos
a escutar
o canto dos pássaros

havia gente
que não se sabia
ser gente

já me vi em dias de sol
sem sol
a sacudir
o sino da capela

havia chuvas
pelos campos
a encher
as últimas pegadas

havia raízes tenras
a nascer
nas enseadas


já me vi em dias de sol
sem sol
a engolir
os últimos sacramentos

havia as indomáveis
árvores
ainda de pé

havia a brisa
nas suas folhas
ressequidas

havia chocalhos
escondidos
nos matagais


já me vi em dias de sol
Sem sol

a haver
será só um único
ponto
onde o olhar
se perde
no horizonte

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Desconhecido



Se todas as teorias fossem levadas a sério, não seríamos nós, mas bonecos de porcelana teorizando a vida; uns sem saber onde começar, outros sem saber onde acabar e outros ainda, com receio de que os cacos os refaçam de novo, para sarapintar a desgraça. Conhece-la de perto é como saber dos nós e dos que nos são chegados. É tarefa árdua, chegar perto do que está perto. É um movimento que nos leva onde não queremos ir. Estranha forma essa que nos faz tão pequenos, quando nos confrontamos com o desconhecido. Será sempre esse que nos diz outras verdades mais de acordo com a nossa busca. O que desejamos, o que não esperávamos, o que já sabíamos e até o que à partida é um começo para saber que já nada é nada, se não nos fizermos ao caminho em busca de outras verdades mais profundas.


Lá nas terras altas, o céu está mais próximo, o sol mais quente, o gelo mais seco, o caminho mais pedregoso, e mesmo assim ainda não consegui enxergar a distância que nos separa. Decisão difícil, esta, de me entregar a outras paisagens citadinas, outras correntes sanguíneas que escorrem por entre o betão. Será sempre esse que abafará todo o passado e mostrará um futuro, próximo. São tantos os rostos que vejo, são tantas as lamúrias que ouço, são tantas as igrejas por onde passo. Estão cada vez mais vazias de gente e cheias de mosquitos que varrem com as suas asas o ar poluído que circunda por entre os santos no altar. Esses já sabem o que é existir, sem existir. Estão simplesmente à espera que alguém os limpe do passado, para não caírem feito bonecos de porcelana junto ao altar, onde de terço na mão, estamos todos numa espera inquieta pelo desconhecido.