Filipe Campos Melo disse, sobre o poema “Já me vi em dias de sol”
O que é a poesia?
Como se escreve?
É o verso inato ou apreendido?
A resposta às questões que coloco não são simples ou singulares.
A interpretação de um poema é talvez um caminho para a sua formulação (sempre subjectiva).
Acredito que a boa poesia deve ser sempre apreensível, mas tal não significa necessariamente que deva sempre reduzir-se a uma imediata simplicidade (até por correr o risco de a destituir do que creio ser uma das suas essências – “dizer o óbvio de forma não óbvia”).
É que, acredito mais ainda, um dos maiores prazeres de um leitor (falo dos leitores que merecem o poema) é demorar-se nos versos, deter-se nos seus significantes, interpretar o seu significado (muitas vezes reconstruindo-o).
O encontro da tua poesia (já lá vão uns anos...) e a irrecusável vontade de a interpretar (pela sensibilidade, pela sabedoria, pela qualidade imersa ao verso) contribuiu significativamente para a minha teorização poética do verso (sempre inacabada, sempre incompleta).
Este poema (que bem me soube reencontrar a tua plenitude e maioridade poética) devolveu-me às questões primordiais.
O poema tem um forte simbolismo, escrito em excelência, sublimado por um tom (dolorosamente melancólico) que arrebata.
Apercebo-me de três marcados momentos.
O Primeiro Momento
Constituído pelas quatro primeiras “quadras”, com quatro subtempos,
Sendo o primeiro, o lugar/cenário
“já me vi em dias de sol/ sem sol/ que pela peneira/ se repartia/ à tarde no quintal”
O segundo, a voz
“havia lamúrias/em surdos/que pareciam vento/nas levadas”
O terceiro, a sua ausência (o sonoro silêncio)
“havia silêncios/no entardecer/que brincavam/às escondidas/nos arvoredos”
O quarto, a percepção do tempo (que decorrido ainda não ocorreu)
“havia caminhos longos/a fazerem-se breves/nos meus passos/ainda frescos”
O primeiro momento, em seus subtempos, é um enquadramento sublime do todo.
Sobressai o traço da inocência, contudo já traçado por uma iniciática melancolia (que se impõe como percepção irrecusável).
O Segundo Momento
Constituído pelas quinta a oitava “quadra”, igualmente com quatro subtempos,
Sendo o primeiro novamente, como recomeço, o lugar/cenário (ainda o inicial mas já desigual)
“já me vi em dias de sol/ sem sol/ que pela manhã/ enchia as colinas”
O segundo, o mundo (já estranho)
“havia gigantes/adormecidos/no caminho/das giestas”
O terceiro, de novo a voz (igual e diversa)
“havia trôpegos/corpos/a escutar/o canto dos pássaros”
O quatro, como súmula, a percepção (passo da sabedoria)
“havia gente/que não se sabia/ser gente”
O segundo momento, em seus subtempos, é um passo profundo.
Sobressai o traço da estranheza, marcado já por uma intensa melancolia (que se impõe como percepção da percepção).
O Terceiro Momento
Constituído pelas nona a décima quinta “quadra”, com dois subtempos, que se fundem, harmoniosamente, tornando-se intrinsecamente dependentes.
O Primeiro subtempo
“já me vi em dias de sol/sem sol/a sacudir/o sino da capela”
Onde saliento o “sino” como símbolo maior deste momento terceiro.
O sino que toca e, em seu badalar, anuncia, como voz sem voz, o perder da vez.
“havia chuvas/pelos campos/a encher/as últimas pegadas
Onde o lado enegrecido, que perpassa o poema, se assume de forma quase explícita,
Logo seguido do seu contraponto, indicando que todo o tempo é ciclo em constante reinício.
“havia raízes tenras/a nascer/nas enseadas”
O Segundo subtempo
“já me vi em dias de sol/sem sol/a engolir/os últimos sacramentos”
havia as indomáveis/árvores/ainda de pé
havia a brisa/nas suas folhas/ressequidas
havia chocalhos/escondidos/nos matagais”
Onde sobressai o jogo de contrastes e oposições e a forma, sublimemente subliminar, como os mesmos ora se expressam, ora se ocultam.
O Quarto Momento
Constituído pelos últimos 8 versos”,
“já me vi em dias de sol/Sem sol/a haver/será só um único/ponto/onde o olhar/se perde/no horizonte”
Onde encontramos o verso mote do poema (“já me vi em dias de sol/Sem sol”), que é repetido no início de cada momento, como reinício do mesmo (opção muito conseguida que introduz no poema o seu lado mais fonético impondo uma cadência que reclama boa declamação),
Mas aqui com uma nuance (muito relevante) em relação aos momentos anteriores (que serve também de ponto de encerramento)
É que, afinal, talvez haja Sol, mesmo que tal possibilidade seja remota (no espaço/tempo)
“a haver/será só um único/ponto/onde o olhar/se perde/no horizonte”
Na sublime excelência que sempre me encantou na tua poesia
Assim é este teu poema.
Sem comentários:
Enviar um comentário