terça-feira, 16 de junho de 2015

Geometria


Tudo por conta de um remoinho que criou uma certa ondulação à volta dos nossos pés. Era de tal forma insinuante aquele remoinho, que ficámos sem saber como se deslocou na nossa direcção. O mar estava calmo, as gaivotas em voos simétricos, enfiavam os bicos na areia, e os olhos, nos nossos olhos. 
Sôfregas por mais ar renovado, levantaram voo!

Dizia-lhe em tom calmo que tudo aquilo me parecia um eco saído do fundo do mar. 
Todo o ambiente era um todo, tanto que nesse todo havia um certo equilíbrio, apesar dos voos assimétricos, causados pelo resvalar de uma gaivota que voava em círculos e criava semicírculos em redor de nós.

Posto isto, evidenciava-se nítido um grito que ecoava ao longo da praia. Saiam de todos os lados, outros gritos desvairados, causando uma melodia eco festiva, nunca antes vista naquele deserto oceânico. Entretanto, também o mar se assumira como um gigante adamastor a tentar engolir o remoinho abandonado. Através da sua garganta funda, a desertora gaivota sumia-se por entre partículas de espuma branca. O contraste agonizava, ante a perplexidade do abominável homem das neves, agora estigmatizado na areia de uma praia deserta. 

Continuava a insistir, dizendo-lhe de novo em tom calmo que tudo é um todo e que tudo é aproveitamento do tempo e das marés, que nada se perde nas asas de uma gaivota. Olhou-me com um olhar extasiado e seguiu adiante. Ocupava o mesmo espaço, pisava as mesmas pegadas na areia, que nos fizeram vir nesta direcção. 

Ocupava eu  um novo espaço, diluído nos voos extraditados no mar alto.

Para um e outro lado regressámos, mas sem certezas de que o tempo iria continuar de feição. 

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Meio-dia do Sol


Era uma manhã cinzenta. A cidade encolhida na neblina, até que o meio-dia do sol chegasse, sofria de claustrofobia. Chegada, todavia, a hora de todos os caminhantes das nuvens descansarem, sentavam-se no alpendre acabado de construir. Disparavam em uníssono olhares de fome sobre o rio. 

Cá em baixo, todos ignoravam aqueles corpos disformes a traçar caminhos no alto. A neblina, cada vez mais densa, engrossava-se num depósito de pensamentos abstractos e de reincidências pecaminosas sobre as calçadas agora desertas. Enquanto os de cima alimentavam os olhos, com tamanha discorrência a socorrerem-se de um abstraccionismo arcaico, os outros cá em baixo, espalmavam-se abruptamente contra os muros.
Todos juntos faziam de conta que a neblina era simplesmente um vulto. Um vulto de passagem.
Estava agora mais próximo o meio-dia do sol. À volta deles, sentia-se cada vez mais a rotação uniforme, que os próprios não distinguiam. O sol encontrava-se já no ponto mais alto, onde os corpos se ajeitam para a iniciação de mais um culto. O caminho percorrido até aqui, tinha simplesmente ficado esquecido, tal como as sombras que se diluíam no betão cinzento. Agora no alto comando, onde o céu se propunha criar a divisória entre o bem o mal, distendia-se em abraços, o Sol, que, mergulhado no cais ordenava que todos se distribuíssem e se preparassem para o último culto ainda em vida.

Os olhos agora abandonados, por entre a neblina transparente, fecharam-se.


quinta-feira, 11 de junho de 2015

Falando em geometria no Sagrado


Todo o momento inspira numa ordem, levando-nos a percorrer caminhos novos. Neles, respira-se, contrariando a vontade do ar que se movimenta em torno dos nossos olhos. Mas, e se o ar rasurado por olhares indiscretos nos trocar as voltas e nos fizer andar em círculos? Muito do que aqui nasceu, convida-nos a diversas viagens. Nelas, damos de caras com um sem número de histórias feitas de momentos paridos no centro da terra. Basta, para isso que os nossos olhos percorram os intervalos do tempo, os mesmos que deram luz própria ao momento do nascimento dos corpos e das formas.


Imaginemos uma figura geométrica! Como é sabido, todas elas são compostas por vários pontos, que, unidos, farão nascer outros, e por aí adiante. Deixamos até de nos sentir uniformes, quando percorremos as linhas de uma dessas figuras. Pensemos então num círculo. Imaginemo-nos a percorrê-lo, tendo como ponto de partida um qualquer ponto desintegrado. Somos levados numa viagem sem princípio e sem fim. Se observarmos à nossa volta, a terra é composta por formas geométricas. Podemos entrar num mundo das formas, arquitecta-las sob um olhar carismático, e deixa-lo ir, ao encontro do recomeço até encontrar o final. Em algum ponto ele parará. Isso o demoverá de ser um foco a afundar-se num ponto qualquer da terra, para aí se reproduzir às escuras - o lugar onde o fazem rodar à volta de si mesmo.

Um lugar fragmentado no seu todo, é o que este espaço é, mas com muito de céu, de terra, de vida, de histórias de vidas, e muito também do Ser e do que nos move como se move o espírito. Fragmentos de um todo que nos toca, numa viagem sem princípio e sem fim. Dos seus fragmentos ainda vivos, podemos, ao pegar um a um, observar a olho nu sobre a origem que os fez fragmentos de uma história. Esta é uma viagem onde poderemos encontrar-nos nas várias histórias; umas vezes sofridas, outras vezes elevadas ao céu. Aqui a história não termina. O espaço é imenso a tender para o infinito.

Um ponto de paragem até à viagem seguinte, faz-nos pensar sobre a nossa descida ao ventre materno, e o que queremos semear para depois colhermos neste lugar sombrio mas granjeador do espaço que nos gerou e que nos faz andar em círculos. Aqui, estamos já corpo e Alma. Orientam-nos nesta viagem os cinco sentidos.

Entra-se agora num lugar composto por várias dessas figuras geométricas. Porém, só uma nos faz parar ao tentarmos formar o nosso próprio movimento. Olhemos em redor dos olhos. Fixemo-nos nas siglas esculpidas em cada pedra do Mosteiro que deu o nome de “Ermida” à aldeia. Sabe-se de uma ermida ser um templo ligado ao Cristianismo, e por norma, quase sempre localizado num lugar ermo e isolado. Talvez por via dos espaços se completarem, para se chegar mais facilmente a Deus. Ao ler os seus cinco sentidos admitindo então o normal movimento dos olhos, começamos por iniciar uma viagem no espaço. Quem não gostaria de poder apreciar dali, as diversas formas que a terra encerra à volta de si mesma? O princípio de um tudo, ou o final de um nada prestes a renascer, começa por nos conduzir nesta viagem ao encontro da humanização. Aqui, estão presentes os anseios da Alma, o Amor original, a divisão dos mundos; o material e o espiritual. A crença num Deus Maior faz-nos alcançar outras dimensões. Esta consciencialização do mundo é um fragmento no espaço, que pode muito bem ser o espaço percorrido por uma lágrima.

Nunca poderemos esquecer a imensidão da terra. A Mãe cuja poderosa energia, tudo cria. Daí que o olhar seja um amplexo forte de calor humano. Dos seus braços estendem-se raízes fortes que nos unem. Poderíamos até comparar as palavras que compõem os fragmentos unidos pelas siglas, numa gigante odisseia no espaço. Cada uma delas seria uma estrela. Escrever-se-ia uma enciclopédia poética. Cada poema seria um astro, cada capítulo, o movimento de intersecção que a terra dá à volta do sol. Entre um movimento e outro, os planetas respiram a nova ordem inscrita nesse mesmo espaço. E se acrescentarmos ao tempo, uma nova ordem de tempo, então, apresentar-se-á um caminho novo nesta viagem. Os sentimentos aqui presentes são uma constante de um desejo prestes a nascer da semente ainda a germinar no peito. Esta energia flui como um rio, estremece-nos tal um vulcão que faz tremer a terra. Continuando, a viagem apresenta-nos aqui e ali, um fio de tristeza, que de vez em quando, aflora, para logo de seguida nos levantar como quem diz:  “Este fragmento perdeu-se dos outros. É a hora de o ajudar a encontrar os seus igu
ais”. Neste caminhar pelo espaço, o livro ganha asas, e voa. Voa ao encontro do amor que conhece, o qual lhe deu força para continuar. 

Contudo, aqui em baixo as formas assumem-se invulgares até na perfeição. O céu é muitas vezes pouco céu e muita escuridão. Aquela ideia que temos do céu, quando olhamos para cima numa procura vã de algo que nos cure as feridas, desvanece-se quando enfrentamos um batalhão de estrelas cadentes e um sol escondido por entre os ecos das pedras. Sendo também um ser vivo, a pedra é uma forma distante do nosso sentir, quando afirmamos a alguém ter um “coração de pedra”, por sabermos da inexistência de sentimentos. Contudo, aqui, essa falta toca-nos com uma energia quente pelas mãos de Deus. Ele tem a capacidade de transformar e elevar até os sentimentos mais enraizados em pedra dura. O granito, por norma, uma norma a seguir neste compêndio. É nas terras altas, que as suas palavras nascem no meio das pedras, e nelas se desenvolvem, amaciando até a aridez granítica das serras.

Poderá dizer-se que o céu desceu à terra, e aqui, se conjugam todos os elementos criados num espaço etéreo. Aqui no colo materno, damos tudo o que temos e recebemos tudo o que temos direito. Experiências acumulados de uma vida a transpirar terra, mas com muito de tudo, e com pouco de muito. A dor, o sofrimento, a alegria, o amor físico, a partilha entre todos os que sofrem as mesmas penas num parto grandioso que é a vida a germinar por todos os cantos da terra. 

Sabendo que a terra é um altar sagrado que nos recebeu, então a terra é um templo maior, onde Deus vive na invisibilidade dos seus traços etéreos para nos seguir os passos, através de descrições metafóricas de uma densidade atípica. Ouve-se agora um eco parido das pedras. Se por um lado, nos surgem corpos famintos de esperança a trabalhar a terra, ouvem-se gritos de dor, por outro, enquanto ela faz desses corpos, espíritos de luz a caminhar para o final do túnel onde os irá receber uma nova Luz. 

É sempre por trilhos sonoros dos corpos e pela luz reflectida nos caminhos, que estes fragmentos respiram, homenageando as gentes que trabalham a terra e dela tiram o seu sustento. É este alimento que seduz a alma das gentes, e nelas se firma o desejo de unir todos os pontos de uma mesma figura geométrica – A Terra. 
Enquanto o tempo passa e as horas se remetem ao silêncio dos ponteiros do relógio, um fio de luz queima os rostos de quem passa apressado e não encontra a porta entreaberta. As lágrimas perdem-se por entre os telhados das casas, enquanto à lareira se contam as mesmas histórias de outras vidas. 

Prosseguindo, agora em espiral e sem princípio ou fim, entramos num novo espaço para mais uma viagem. Este é um novo caminho, com fé. A mesma fé enraizada, que o foi na terra arada. Semeou-se a última semente, sobre a qual, brotam os rebentos de um novo ponto no espaço. Continuando a percorrer a espiral do tempo, encontramo-nos agora sem tempo e sem espaço para continuar a viagem, porque é tempo de silenciar e meditar. Molde-se o barro e nasça o novo homem.

Ao chegarmos ao ponto central da nossa viagem, um outro far-nos-á partir, ou então serenar. Quando aqui chegarmos, poderemos então dar por completa a nossa viagem? Não! Não me parece. Poderemos continuar a folhear a nossa história, lê-la, senti-la, e sobretudo, fazer dela mais um sopro de vida que recomeça e se acaba para renascer de novo.

Passamos algum tempo existindo e persistindo, como se o mundo fosse uma composição a entrar nos nossos olhos, e as pessoas um mistério a irromper pelos nossos sentidos. Teorizamos a dor, a alegria, o Amor, a Luz, a Escuridão e por fim o movimento Espiritual do mundo. Teorizamos tudo como se a vida fosse uma composição aquosa, um bálsamo a inalar-nos, quando ressentidos.
Não passamos então de um teoria abstracta a querer chegar ao centro do maior centro do mundo.
Agora, persistindo na ideia do mundo das pessoas, existimos mas não persistimos numa existência fundamentada num crer sem tamanho, porque o mundo das formas também existe para dar cor e luz ao movimento intercalado de olhares cabisbaixos a roçar as pedras do caminho.

Cicatrizam-se as formas ausentes do mundo, que se completam em círculos fechados. Caminhantes, somos todos em caminhos vários, dando movimento ao mundo das formas. Geometricamente falando, somos todos Um, mas não sabemos todos, a ordem com que se inicia o movimento indicador de uma nova ordem – A Ordem do Movimento intercalado das formas.
Andamos em movimentos contrários mas trancados a tentar dar cor e luz à vontade de sermos somente um movimento nascente que cresce à vontade por dentro dos nossos olhos.

Quando se dá finalmente o encontro do céu com a terra, a vida é um renascimento constante de emoções. À flor da pele, nascem novos caminhos de luz, mas também novas viagens coladas à memória dos tempos vividos na aridez da serra. A energia feminina e a masculina numa dança celestial. A vida é dotada de calor humano, ao divagar por entre as várias histórias que a vida contém. Aqui a fé anda de braço dado com a dor, mas é ela a forma mais carismática de alcançar a própria fé com palavras mansas, de um coração elevado ao alto.

Dolores Marques

sexta-feira, 5 de junho de 2015

E nós com sede de mais um Agosto


Só porque não nos temos, caminho agora em passos soltos, divagando, na tentativa de encontrar o fio condutor da nossa história. Sei que foste, como se foi tudo o que plantaste no meu corpo, mas sei uma verdade nossa que floriu e deixou pétalas rosáceas nas palmas das minhas mãos.

Lembras quando tudo era branco, e eu lancei as rosas ao vento, para que também ele fizesse crescer nos jardins os lírios roxos?
Lembras quando na serra, floriam rosmaninhos, e nós com a sede de mais um agosto, secámos todas as flores silvestres?
Lembras quando nas nascentes de águas cristalinas, saciávamos a nossa sede e crescia no meu ventre a vontade de sermos corpos envoltos em pura seda de águas mornas?
Lembro de tudo, como se fosse ainda hoje o tempo, em que juntos demos início à história que fez correr mundo e fez calar o vento, quando já nada trazia de novo para nós.
Foi aí, lembras? Foi aí que tudo terminou, para dar início ao que, sentindo ainda, te traz um dia de cada vez para mim.
Sabes que nasceram novos lírios roxos e com eles novas cores primaveris?


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quarta-feira, 3 de junho de 2015

No Pomar

No pomar ergueu-se a árvore maior
de um fruto que gerava por entre as folhas
um movimento celestial

E assim cresceu a árvore no pomar
e o fruto na árvore dele
que sem se abstrair 
do seu movimento
foi seguindo até à raiz 
onde se encontrou
e se enraizou 
para mais um encontro 
de raízes
e folhas
e frutos
e seiva no pomar 



Foto e poema: Dolores Marques

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Café da Manhã


Gosto de ver um sorriso logo pela manhã. Para isso, alinho a cabelo em frente ao espelho e logo de seguida fixo o olhar num ponto iluminado. Posto isto, ele devolve-me em primeira mão o sorriso ali sufocado. Tinha-se tratado de ser um desejo seu, o último antes de me adentrar nos subúrbios da noite.

Mal entro na pastelaria habitual para um café, apercebo-me que ando há alguns anos a pisar o mesmo chão, como se fosse uma penitência, sei lá, ou qualquer outra obrigação, que se distingue agora nítida, enquanto com a colher dou umas voltas à chávena e tento arrefecer a bebida energética antes de a levar à boca. Dizem do café provocar uma certa euforia matinal e que se estende pelo dia fora. 

Já me dei conta de que observo todas as pessoas encostadas ao balcão, enquanto bebem sofregamente uma meia de leite, ou tal como eu, um café. Ninguém fala, ninguém sorri. Limitam-se àquele momento silencioso, como se a noite ainda estivesse presente em cada pensamento. Engolem de tal forma aquele líquido matinal, que por vezes me parece já um antídoto contra as forças do mal, que poderão estar por detrás de um dia só. 

Forçada a seguir caminho, vou ao encontro de alguma força que me seja doada por mais um sorriso, porque alguns ficaram afogados em meia dúzia de chávenas, agora vazias e amontoadas na minúscula máquina de lavar louça da pastelaria habitual para um café.

Amolador

Gosto de todos os dias, porque todos os dias são coloridos, não desfazendo das noites que sempre me despertam outras caminhadas mais silenciosas.
Não é que não goste de ruídos, porque até gosto de alguns. Por exemplo, estar o dia todo a ouvir os sons provocados pelo escorregar por entre uma lona grossa, dos vários detritos de umas obras ali no edifício em frente, é qualquer coisa de sedutor, porque me leva até à janela de vez em quando.

Até já me precipitei para ela algumas vezes quando ouvia o som do amolador, que de sisudo, hoje não tem mesmo nada. Não parava de andar de um lado ao outro com a gaita na boca e o seu carrinho cheio de tralhas, que mais pareciam peças de arte antiga a captar o interesse dos turistas que se passeavam de cabelo ao léu nos novos autocarros turísticos.

Este lado da cidade é assim um misto de várias sensações, que me fazem recuar ao tempo em que os velhos chapéus-de-chuva, as facas e tesouras e até outros objectos, se mortificavam de tanto tremerem junto às mãos do amolador. Fiquei a pensar…isto porque os ruídos despertam alguns pensamentos desajustados. Também porque deste lado da cidade, ninguém se presta a sair à rua com facas, chapéus de chuva e tesouras para amolar.

O amolador deve ser assim uma espécie de peça de um museu, para dar vida à cidade que existe agora dentro de outra cidade na Zona Oriental da Lisboa. É que do outro lado da cidade, não se ouve este som, que desperta qualquer alma a precipitar-se para a janela. Qualquer dia saio mesmo à rua a tentar perceber se o amolador ganha agora a sua vida, não, a amolar objectos de tortura, mas a entreter a zona mais privilegiada da cidade.

DM/Dakini in Café da Manhã