segunda-feira, 14 de junho de 2010

Dimensões IV - Abundância



Se me viesses ver agora por aqui, dizia-te de uma dor que me entrou de rompante, pela porta da frente.
Dizia-te que nem o sol me visitou nesta manhã cinzenta onde o céu se propaga no além. Será ali que o irei encontrar debruçado sobre as searas de trigo dourado, encontrar-me-ei nos teus braços, quando nelas me deitar e a terra me despir desta dor presente, que é não saber onde moram as espigas de uma vida vazia, sem pão.
Quero mesmo que venham todos visitar este meu chão. Tenho flores do campo, sobre a mesa, e cachos de uva despidos em toalha bordada à mão. A cerejeira ao fundo do quintal apresenta-se nua com os seus ramos adelgaçados, depois que um bando de pássaros a visitou e por ali repousou os seus bicos esfomeados. Migalhas já não são bem-vindas a este chão. As toupeiras esburacaram a terra e levaram as espigas deixadas por engano, ou quiçá, por mera vontade do dono para uma boa distribuição das colheitas. Serão sempre de ano para ano, as visitas subterrâneas, que farão da terra a revolta do verão, e nós, por nada sabermos de seus corpos moles, iremos regar a terra e calcar com os pés, os refúgios esburacados que foram fazendo enquanto dormíamos. Se tivermos as doses certas de um alqueire de milho, saberemos a certa medida da equitativa distribuição e nada nos fará mergulhar nesta amálgama que é ter terra sem saber cozer o pão. Saberei então dizer-te, porque se foram as cerejas neste início de verão e como colher os frutos no fim da estação, sentindo que na mesa, haverá o vinho escorrendo na taça que teus olhos afiançaram ser de puro cristal. Serei mosto no teu peito quando o encontrar ao relento, e a pele se cobrir de raízes magras que se enlacem ao simples toque do meu corpo.
(Lembras de um dia morto pela agrura dos tempos em que o arado rasgava a terra e eu me deitava no chão húmido, à espera que um pé de flor viesse florir na palma da minha mão?)
Foi essa a forma que dei à fome que trazia, quando te vi a caminhar sobre a terra, e dela fizemos o leito resguardado no nosso olhar. Deitámo-nos na maciez quente e lilás de bordados frescos trazidos pelas aragens quentes da serra, e ali ficámos até ao nascer do sol. Esse circulo de fogo que caiu pela madrugada e esperou que nos honrássemos e nos saciássemos dos aromas húmidos do verão.
Temo que me queiras ver vestida, mas eu, nua, procuro uma peça útil para contigo saborear este manjar dos deuses. Enrolei o meu corpo a um manto de linho, pertença única desta mansão.
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(foto DM)

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