domingo, 1 de agosto de 2010

Dimensões X - Pobreza



“tanta casa sem gente e tanta gente sem casa”




Mas não, não poderia ser eu, na calada da noite a escalar muros, ao encontro deles, só deles. Entrei à socapa, como alguém que se presta a profanar vidas de outros eus. Na rua, os cães ladravam, os carros passavam, mas eu, sempre eu à procura de traços, de algo decifrável, mas não entendível. Agora sim, essa já era eu.

Morreram os habitantes daquele lugar. Ficaram os registos de uma vida, ou de várias vidas esboçadas nas suas tristes paredes. Mas, encontrá-las nesse lugar vazio, é ir ao encontro de muitas outras que se encontram ainda, prontas para habitar estas paredes nuas, carentes de um quadro vivo, prestes a iniciar uma nova linhagem, que lhes pintasse o sol. Mesmo na escuridão nocturna, aquele espaço era a referência de algo que me sugestionou ficar. Sim, ficar na tentativa de captar a energia daquele lugar. Cartas, muitas cartas sem destinatário, livros muitos livros amarelecidos pelo tempo. Foram lidos e relidos penso eu, mas quem marcou página a página, daqueles livros, já não deixa marcas na poeira que cobre aquele chão. Se por acaso, me pesassem os pés, ficaria ali até ao dia seguinte, mas tive medo, muito medo de me perder naquele amontoado de sonhos ao abandono. Coisas, muitas coisas em desuso que de tanto uso, deixavam a nu algumas teias de aranha que vinham morrer nos meus braços. Havia pregos de aço nas paredes, que sustentavam ainda restos de vida, muita vida que ali se alimentou, ali se perpetuou naquele espaço vazio. Havia muita água em garrafas e garrafões ainda virgens, e eu com sede, tanta sede de beber daquela água, benzida pelo tempo, mas medo, muito medo do veneno que esse mesmo tempo lhe ofreceu. Se por momentos imaginasse que o sítio onde meus pés me levaram no momento seguinte, era habitado por gente, mas desabitado na pele dessa mesma gente, teria gritado por eles; venham, aqui há de tudo, e ainda mais para vos tocar a alma; há um jardim de ervas secas, mas foi só o verão que as queimou, há um tecto para gente sem casa, há letras impressas em livros e cartas de vidas que o destinatário rejeitou. Abandonem esses lugares inóspitos, onde a verdade se assume sem nenhum gosto especial.
(Gente sem terra, nem tecto, nem nada que os fizesse voltar àquela casa vazia, mas com tudo que se precisa para se recomeçar uma vida em todas as que ficaram. Sala, quartos WCs´, cozinha, jardim, móveis, loiça, banheira, lavatório e livros, muitos livros e ainda cartas sem destinatário. Também morreu?)












“Tanta casa sem gente e tanta gente sem casa”, li eu numa das paredes tatuadas de uma cidade que já não sabe se é governada por todos os desabitados, ou se pelos cofres fortes de quem vive, mas jaz morto na sofreguidão que suas vidas lhes ofereceu. Decifrar as marcas de um tempo, é tentar descobrir quantos soalhos ele reergueu. Os cães ladravam na noite, enquanto esperavam que a casa há tantos anos abandonada, fosse mais um lugar a ocupar. Só mais um, entre tantos os tectos que existem nesta cidade, desabitados por Deus.
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(fotos DM)

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