domingo, 1 de agosto de 2010

Dimensões XII (Até à próxima Primavera)


Por muito que os meus olhos me mostrem que a minha força, reside na luz que me foi dada à nascença, tenho sempre presente que a morte acaba sempre por vencer a vida. Apesar de me saber tal como todos, um ser de luz, esta, apresenta-se com uma tonalidade diferente, este foco que vem como um furacão e esmiuçar o passado, a esconjurar o futuro e a eternizar o presente através das vestes de uma alma que se escondeu por detrás da minha sombra. Essa, tem sempre um destino para mim, não fosse eu, um ser mortificado em vida, esmiuçado em amor, e desafortunado em sonhos. São tantos os sonhos que me mostram novos caminhos, através da morte de todas as células, de todos os poros da minha pele, de todos os traços do meu corpo, e eu não o sinto, não o vejo, não o considero meu, porque nunca foi meu, mas sim teu, a perfurar-me a carne, em experiências de quase morte, uma morte tua sempre que o teu pensamento, se funde no meu. Mas agora, esta ausência de vida, encaminhou-se para as profundezas de um mundo desconhecido, e lá, ela encontra-se uma figura em tela branca desenhada e particularizada em todos os pontos escuros que só brilham na noite.


Continuo por aqui, em busca de algo que me faça não ter medo da morte. Sim, porque a minha morte, és tu, quando te encontro a viajar no escuro. É uma longa viagem, lá onde outros se escondem, por não saberem já, de que é que se morreu, se de vida plena ou de morte serena. O medo que tenho é só por ti, não por mim. Sei, sinto que voltarei à vida que me fez vir aqui, por nós, mas tu não me falas, não me tocas, não te oiço, não te vejo a aura escondida. Diz-me como nasci, para saber como hei-de morrer. Deseja-me pelo menos uma boa morte, numa hora pequenina. Não é o que se diz quando uma mãe vai parir um filho, que deixa de ser seu, quando a alma o toma por inteiro? Acusa-me de ter tido em vida, a visão fantástica de como se morre aos poucos, sem ter sentido a decadência num olhar que não se movimenta, por ter já trancado as imagens de quando nasceu. Diz-me de uma morte inteira, por ti, só por ti. Quero-me assim como vim para morrer aqui.


Sinto-te nas partículas que esmiúçam o ar que respiro, na confusão emergente de um corpo que caminha sem braços, sem pernas e sem olhos ao encontro de um corpo que foi meu, quando deixou de ser teu. Segreda-se-me um vento tardio, um limbo de olhares que me enterraram ainda antes de eu nascer. E tu não me dizes para onde ir, se para onde o meu olhar se acendeu, se para o espaço ocupado pela minha sombra que me encolheu. Oiço-te nas esquinas por onde passo, onde há mendigos sem tecto, sem alimento de um corpo que escolheu viajar na noite e acordar no meio das estrelas. Dormem como eu, sempre que as tento barricar num beco onde guardo todos os segredos, de quando a tua alma em mim nasceu.

Há imagens surreais de quando me dispo na noite e te espero, mas agora, que sei onde me perdi, vou sem parar, e viajo através da minha morte para um sítio onde ela está sempre presente. Desenho-lhe as mais caricatas figuras. Eu deitada, eu em pé, eu de olhos abertos, eu de braços erguidos, eu de cabeça feita para te dizer, que ao nascer, a morte é um caminho que sigo, mas que ao morrer, há uma vida inteira que me espera, onde guardei todas as minhas memórias, todos os presentes que a vida me ofereceu, quando a morte me disser:

- vem, é a hora certeira de uma vida que te escolheu, é agora o momento para veres que essa mesma vida, é o infinito onde reside toda a força que na tua sombra se escondeu.

Diz-me agora, como quando me segredavas ao ouvido e me dizias baixinho: é a hora, é a hora da morte vencer a vida, só até à próxima Primavera.

Dimensões X - Pobreza



“tanta casa sem gente e tanta gente sem casa”




Mas não, não poderia ser eu, na calada da noite a escalar muros, ao encontro deles, só deles. Entrei à socapa, como alguém que se presta a profanar vidas de outros eus. Na rua, os cães ladravam, os carros passavam, mas eu, sempre eu à procura de traços, de algo decifrável, mas não entendível. Agora sim, essa já era eu.

Morreram os habitantes daquele lugar. Ficaram os registos de uma vida, ou de várias vidas esboçadas nas suas tristes paredes. Mas, encontrá-las nesse lugar vazio, é ir ao encontro de muitas outras que se encontram ainda, prontas para habitar estas paredes nuas, carentes de um quadro vivo, prestes a iniciar uma nova linhagem, que lhes pintasse o sol. Mesmo na escuridão nocturna, aquele espaço era a referência de algo que me sugestionou ficar. Sim, ficar na tentativa de captar a energia daquele lugar. Cartas, muitas cartas sem destinatário, livros muitos livros amarelecidos pelo tempo. Foram lidos e relidos penso eu, mas quem marcou página a página, daqueles livros, já não deixa marcas na poeira que cobre aquele chão. Se por acaso, me pesassem os pés, ficaria ali até ao dia seguinte, mas tive medo, muito medo de me perder naquele amontoado de sonhos ao abandono. Coisas, muitas coisas em desuso que de tanto uso, deixavam a nu algumas teias de aranha que vinham morrer nos meus braços. Havia pregos de aço nas paredes, que sustentavam ainda restos de vida, muita vida que ali se alimentou, ali se perpetuou naquele espaço vazio. Havia muita água em garrafas e garrafões ainda virgens, e eu com sede, tanta sede de beber daquela água, benzida pelo tempo, mas medo, muito medo do veneno que esse mesmo tempo lhe ofreceu. Se por momentos imaginasse que o sítio onde meus pés me levaram no momento seguinte, era habitado por gente, mas desabitado na pele dessa mesma gente, teria gritado por eles; venham, aqui há de tudo, e ainda mais para vos tocar a alma; há um jardim de ervas secas, mas foi só o verão que as queimou, há um tecto para gente sem casa, há letras impressas em livros e cartas de vidas que o destinatário rejeitou. Abandonem esses lugares inóspitos, onde a verdade se assume sem nenhum gosto especial.
(Gente sem terra, nem tecto, nem nada que os fizesse voltar àquela casa vazia, mas com tudo que se precisa para se recomeçar uma vida em todas as que ficaram. Sala, quartos WCs´, cozinha, jardim, móveis, loiça, banheira, lavatório e livros, muitos livros e ainda cartas sem destinatário. Também morreu?)












“Tanta casa sem gente e tanta gente sem casa”, li eu numa das paredes tatuadas de uma cidade que já não sabe se é governada por todos os desabitados, ou se pelos cofres fortes de quem vive, mas jaz morto na sofreguidão que suas vidas lhes ofereceu. Decifrar as marcas de um tempo, é tentar descobrir quantos soalhos ele reergueu. Os cães ladravam na noite, enquanto esperavam que a casa há tantos anos abandonada, fosse mais um lugar a ocupar. Só mais um, entre tantos os tectos que existem nesta cidade, desabitados por Deus.
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(fotos DM)