Batiam desnorteadas as asas da borboleta nocturna. A luz do candeeiro, inerte insistia na direcção do bater de asas arremessado contra o alcatrão. Tentei com as pontas dos dedos sentir-lhe algum movimento para que voltasse a voar, como há pouco. Nada se comovia perante o arrefecimento do voo.
Fechei os olhos à luz. Forcei aquele vidro fosco a quebrar-se. Mas, só um clarão preenchia o fundo negro dos meus olhos. Ampliava-se na sua trajectória - um círculo vicioso em rodopios coloridos até se desvanecer por completo. Tentei que tudo voltasse, para me concentrar no momento anteriormente liberto. Abri os olhos. Procurei de novo a borboleta. Tinha-se libertado finalmente das amarras da luz. Voou para sítio incerto.
Foi talvez em direcção ao seu reencontro. Um dos reencontros finais. Tinha-se libertado do emaranhado de folhas, onde ainda sobrevivem algumas flores amarelas. Tinha-as beijado repetidamente. Elas, imóveis aceitavam o toque suave das suas asas.
Continuei ali naquela rua como se tudo fosse real. E tudo me parecia assim, uma verdade perversa onde todos pensam que vivem livremente em qualquer lugar da noite. Enquanto a borboleta voava, nada me indicava um lugar onde também eu pudesse fazer parte daquele cenário onde o irreal se funde com o real. Era só eu e as alturas de um céu que se escondera até da própria noite.
Enquanto isso, observava os aviões tinham por ali traçado a sua meta. Sabia-o pelas luzes ténues que alternavam com aquele monstro em que se transformara o azul indigo. Como desenhar tal figura na noite, ainda que seja sob o céu azul? Tudo me parecia um momento ficcionado nas asas negras da borboleta nocturna. Até as flores amarelas do canteiro se entregaram ao chamamento dos remoinhos criados pela brisa na folhagem verde.
Tudo desaparecera como se tivesse adormecido e sonhado com um cenário sobreposto à vontade de voar, para não mais voltar a ser corpo, mas alma nascida no centro de uma flor amarela. Foi então que voltei atrás no tempo e recordei um voo parecido com aquele primeiro em que a borboleta embateu no chão. Vi claramente uma nuvem branca a envolver-me toda, vinda não sei de onde. O toque dessa montanha branca era suave mas imenso, tal pétala de uma flor que chama por nós.
Onde começa a realidade, quando tudo me parecia ficcionado naquele lugar por cima da ponte onde fui colhida pela viatura? Onde estava, para me fazer ver, não a minha realidade, mas outra em qualquer ponto a existir naquele lugar?
Lembro dos paramédicos, enfermeiros, amigos e conhecidos que conhecem o local, dizerem não acreditar….sem um arranhão? Sem nada que me impedisse de fazer a minha vida normal. Um deles disse-me que um atropelamento naquele lugar seria levado o corpo directamente para a morgue.
São directos, com uma realidade absurda? Não creio: Quero crer que são a realidade em acção. Eu, fui um momento ficcionado…talvez. Mas aqui estou, depois de uma terceira vez em que estive às portas da morte. Nem sempre se abrem. Só quando se está pronto para seguir viagem, ao entrar-se por ali dentro e iniciar-se o voo.
Tudo é real? Onde começa a realidade e termina a ficção, ou onde estamos todos neste cenário contraditório em vários sentidos obrigatórios.Só existe um sentido obrigatório. O AMOR, esse sentimento que nos parece tão distante umas vezes, e outras tão perto como se fosse só um veio carregado de dor. Ou porque amamos, ou porque não sabemos como amar e responder a esse chamamento.
Mas, isso é real? Ou fará parte de uma ficção onde não nos sabemos, por não termos asas para voar?
Foi só uma paragem numa rua, a minha rua, onde voo muitas vezes para lugares fundos…
Sei lá porque se inventam histórias e personagens ainda que reais. Tudo em mim é a realidade vivida, sentida e desenvolvida num cenário emocional, onde possa criar nova vida através do real, mesmo que muito conteúdo seja ficcionado. Tudo tem que ser real.
ÔNIX