Queremos muito, com a condição de que seja breve e aconteça no imediato momento, tal como se mata a sede, se sacia a fome e se alimentam vontades novas. Estas, a imporem-se sangue quente em corpos estranhos, almas em peregrinação pelo mundo dos homens e espíritos incautos no caminho que os levará a Deus.
Vive-se um tempo de incertezas e insatisfação. A solidão fecha caminhos, enquanto as vozes de um silêncio morredoiro, cavam flancos e abrem fronteiras onde só o ser humano pode chegar.
Agora, toda a obra nasce e morre em cada noite prestes a chegar. Mas, já não há noites nem dias. Tudo avança contrariamente desde que se afundou o farol no alto mar. Cessaram os encontros de mãos estendidas.
Os remos vão incertos remando contra a maré, enquanto nós nos estranhamos.
Estranhamo-nos tanto quando nos encontramos!
Então porque fazer de conta que os encontros são ferozes na amizade? Porque se medem as amizades, se quantificam os sentimentos tal uma raiz quadrada mal-intencionada de verbos acabados em (ar), como se o verbo amar fosse só um tempo a terminar, sem sequer começar?
Queremos tudo na justa medida.
Então, justificam-se todos os erros com a morte, quando se diz: “coitado, já lá está, que Deus tenha misericórdia da sua alma e lhe perdoe os pecados”.
Elege-se assim uma nova medida para medir todos os gestos, por quanto justificar, o que por si só, está justo e edificado.
Gritamos por misericórdia, pelos que em nome de Deus se entregam em sacrifício, arrastando para o cadafalso, outros. Divinizada fica a morte. Profetiza-se o fim, com a condição de se chegar imaculado com as mãos ainda a escorrer sangue pelos mortos e pelos vivos, e por todos os que não sabem rezar.
Rezamos o acto de contrição e juramos amar-nos uns aos outros, como se tudo tivesse que ver, ou com a fé, ou com o medo que temos de não ter fé.
Se por um lado tememos a Deus pelos pecados que cometemos, por outro, lamentamo-nos pelos juízos que fazemos dele. Cuspimos na cara uns dos outros como quem cospe no prato onde comeu. Chegamos mesmo a duvidar da nossa crença enraizada na fé que julgamos conhecer. Existimos então para o que der, e para o que vier.
Todavia, variáveis conhecidas e simétricas aos desejos, compõem-se em partes iguais, para o que vier a ser quando já nada se conseguir somar nem dividir em partes iguais. Se o retorno for gratificante, valerá a pena volvermo-nos no regresso a Deus e voltarmos como almas novas a começar do nada, para aí, acontecer o inevitável traduzido nas várias figuras geométricas onde se traçou, faz tempo, os vários caminhos da alma humana.
A evolução natural faz-se caminhando. Juntos, daremos as mãos e tocaremos os pontos luminosos que habitam em cada um de nós.
Unidos, pois, na continuidade dos abraços, ocupando o espaço de cada um, ao derrubarmos muros e outros murais castigados pelo desnorte dos nossos gestos.
“Atrás de tempos, vêm tempos, e outros tempos hão-de vir”, escreveu o poeta, como quem sabe de um tempo morto e de um sol-posto, mas a luzir por dentro do nosso horizonte. Vingaremos pois, os contratempos nas insígnias da boa aventurança.
Dolores Marques in Coração da Terra, Rúbrica Quinzenal, Notícias Castro Daire